quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Blogando o Corão: Surata 1, "A Abertura"

Blogando o Corão: Sura 1, "A Abertura"

Al-Fátiha (A Abertura) é a primeira sura/surata (capítulo) do Corão e a oração mais usual do islão. Se o leitor for um piedoso muçulmano e reza as cinco orações diárias do preceito islâmico, recitará Al-Fátiha dezassete vezes no decurso dessas orações. De acordo com uma tradição islâmica, o profeta muçulmano, Mafoma, disse que Al-Fátiha superava tudo o que fora revelado por Alá na Torá, nos Evangelhos e no resto do Corão (Allah, "O Deus" em árabe, é a palavra usada por cristãos e judeus arabófonos para se referirem a Deus, assim como pelos muçulmanos). E, com efeito, Al-Fátiha condensa eficiente e eloquentemente muitos dos principais temas do Corão e do islão em geral: Alá é o "Senhor dos mundos", só ele deve ser adorado e só a ele se devem dirigir súplicas, é o juiz misericordioso de cada alma no dia do Juízo Final.

Na teologia islâmica, Alá é o autor de todas as palavras do Corão. A alguns pode parecer estranho que Alá diga algo como «louvado seja Alá, Senhor dos mundos», mas a interpretação islâmica tradicional é que Alá revelou esta oração a Mafoma logo no início da sua carreira profética (a qual começou no ano 610 AD, quando recebeu a primeira revelação de Alá por intermédio do arcanjo Gabriel - revelação registada no 96º capítulo do Corão) para que os muçulmanos soubessem como rezar.

É pelos seus dois últimos versos que Al-Fátiha suscita maior apreensão aos não-muçulmanos e pelos quais tem surgido ultimamente nas notícias. Um imã xiita, Husham Al-Husainy, suscitou polémica ao parafrasear esta passagem durante uma oração no encontro de Inverno do Comité Nacional do Partido Democrata, dando impressão de que estaria a rezar pela conversão ao islão dos representantes ali reunidos. O imã Yusuf Kavakci, da mesquita central de Dallas, rezou Al-Fatiha no Senado Estadual do Texas, dando azo a idênticas preocupações.

Os dois últimos versos de Al-Fátiha rogam a Alá: «6. Mostra-nos a via recta, 7. a via dos que favoreceste; não a dos que mereceram a Tua ira, nem a dos que se extraviaram.» [N.T.: tradução nossa do texto em inglês deste comentário, a tradução de Pickthal]. A interpretação islâmica tradicional desta passagem é que a "via recta" é o islão - cf. o livro do apologista do islão, John Esposito: "The Straight Path". Os que mereceram a ira de Alá são os judeus e os que se extraviaram são os cristãos.

O comentador clássico do Corão, Ibn Kathir explica que «as duas vias que Ele descreveu neste passo são ambas erráticas» e que aquelas «duas vias são as dos cristãos e dos judeus, facto que o crente deve estar bem ciente, de modo a poder evitá-los. A via dos crentes é o conhecimento da verdade e o ser-lhe conforme. Em comparação, os judeus abandonaram a prática da religião, enquanto os cristãos perderam a verdadeira sabedoria. Eis a razão por que a "ira" se abateu sobre os judeus, enquanto a descrição dos cristãos como "extraviados" é mais apropriada.»

A interpretação de Ibn Kathir desta passagem não é uma interpretação singular e "extremista". Na verdade, a maioria dos comentadores muçulmanos acredita que os judeus são os que mereceram a ira de Alá e que os cristãos são os que se extraviaram. Esta perspectiva é a de Tabari, de Zamakhshari, de Tafsir al-Jalalayn, de Tanwir al-Miqbas min Tafsir Ibn Abbas, a de Ibn Arabi, para além de Ibn Kathir. Uma outra perspectiva, contrastante mas não maioritária, é a de Nisaburi, o qual sustenta que «aqueles que mereceram a ira de Alá são as pessoas do descuido e os que se extraviaram são as pessoas da intemperança.»

Os wahhabistas foram criticados há alguns anos por ter acrescentado as expressões "tal como os judeus" e "tal como os cristãos", entre parêntesis, a esta passagem, num Corão editado na Arábia Saudita. Alguns comentadores ocidentais julgaram que os sauditas teriam concebido esta interpretação e, de igual modo, teriam dado origem à noção da hostilidade do Corão para com os judeus e cristãos. Os muçulmanos de todo o mundo aprendem como um dado adquirido que a oração fundamental da sua fé anatematiza os judeus e os cristãos.

Infelizmente, esta interpretação é venerável e ortodoxa na teologia islâmica. A introdução da referida explicitação entre parêntesis a uma tradução dificilmente afectaria a atitude dos muçulmanos, visto que o texto em árabe é, sempre e em toda a parte, normativo, em qualquer circunstância, e dado que tantos comentários veiculam a ideia de que judeus e cristãos são censurados na passagem corânica em questão. Dezassete vezes por dia, pelos piedosos.

Note-se que não estou a afirmar que a interpretação anti-semítica e anti-cristã de Al-Fátiha é a interpretação "correcta". Embora não pense que os textos religiosos sejam infinitamente maleáveis e admitam qualquer interpretação que o leitor lhes deseje atribuir, como alguns parecem crer, neste caso a leitura de Nisaburi tem tanto fundamento como a outra: não há nada no texto, em si mesmo, que conduza à conclusão inevitável de que se fala dos judeus e dos cristãos. E há que assinalar que, no seu colossal comentário ao Corão, significativamente chamado Fi Zilal al-Qur'an ("Na Sombra do Corão"), o teórico da jihad, activo no séc. XX, Sayyid Qutb, não faz qualquer menção aos judeus nem aos cristãos a propósito desta passagem. Por outro lado, a perspectiva islâmica segundo a qual os judeus mereceram a ira de Alá e os cristãos se extraviaram não decorre apenas desta passagem. Os judeus mereceram a ira de Alá ao rejeitarem Mafoma (2:87-90) e os cristãos extraviaram-se ao proclamar a divindade de Cristo (5:72).

A Hadith - as palavras e feitos de Mafoma e dos primeiros muçulmanos, pelos próprios narrados, também contêm material ligando os judeus à ira de Alá e os cristãos à maldição resultante de se desviarem da via recta. (Os judeus também são amaldiçoados, de acordo com o Corão 2:89 e uns e outros são amaldiçoados, de acordo com 9:30). Uma hadith conta que um dos primeiros muçulmanos, Zaid bin 'Amr bin Nufail, nas suas viagens, conheceu estudiosos do judaísmo e do cristianismo. O estudioso do judaísmo disse-lhe: «Não adoptarás a nossa religião se não receberes a tua parte da ira de Alá.»; e o cristão disse-lhe: «Não adoptarás a nossa religião se não obtiveres uma parte da maldição de Alá.» Zaid, escusado será dizer, tornou-se muçulmano.

À luz de passagens como estas e de outras semelhantes não surpreenderá que tantos comentadores muçulmanos tenham interpretado Al-Fátiha como contendo as referidas perspectivas.

Próximo capítulo: uma introdução ao capítulo mais longo do Corão, a surata 2, "A Vaca", e uma breve panorâmica dos versos 1-39.


Texto original: Blogging the Qur'an: Sura 1, "The Opening"