segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Blogando o Corão: surata 2, "A Vaca", versículos 1-39

Blogando o Corão: surata 2, "A Vaca", versículos 1-39

A surata 2, Al-Bácara (A Vaca), à semelhança da maioria dos capítulos do Corão, recebe o seu título de algo nele relatado - neste caso, o episódio no qual Moisés transmite aos israelitas o mandamento de Alá, ordenando o sacrifício de uma vaca (2:67-73). É a surata mais longa do Corão - 286 versículos - e dá início à disposição geral (mas não absoluta) de apresentar as suratas da mais longa para a mais breve, com excepção de Al-Fátiha, a qual merece a sua posição de destaque como primeira surata devido à sua centralidade no islão. A surata Al-Bácara, "A Vaca", foi revelada a Mafoma em Medina - isto é, no decurso da segunda parte da sua carreira profética, a qual teve início em Meca no ano 610. Em 622, Mafoma e a incipiente comunidade muçulmana deslocaram-se para Medina, onde, pela primeira vez, Mafoma se tornou líder político e militar. Os teólogos muçulmanos consideram, de um modo geral, as suratas de Medina como tendo precedência sobre as de Meca sempre que surja alguma discordância, de acordo com o versículo 106 deste capítulo do Corão, no qual Alá fala da abrogação de alguns versículos e da sua substituição por outros melhores. (Esta interpretação do versículo 106 não é, contudo, unânime, sustentando alguns intérpretes que o versículo não se refere à abrogação de parte alguma do Corão, mas sim às escrituras judaicas e cristãs. Voltaremos a esta questão oportunamente.)

A surata 2 compreende material de grande importância para os muçulmanos e é tida em grande consideração. O comentador medieval do Corão Ibn Kathir (cujos comentários continuam a ser lidos e respeitados pelos muçulmanos) dá conta, de modo coloquial, de que a recitação desta surata perturba Satanás, relatando que um dos primeiros seguidores de Mafoma, Ibn Massud, afirmou que Satanás "se retira da casa onde a sura Al-Bácara esteja a ser recitada e que, aos sair, solta gases". Com expressão menos vulgar que Ibn Massud, o próprio Mafoma diz: «Satanás foge da casa onde a surata Al-Bácara é recitada».

O capítulo começa com três letras árabes: alif, lam, mim. Numerosos capítulos do Corão começam deste modo, com estas três letras árabes, o que deu origem a uma considerável variedade de especulação mística quanto ao significado dessa sequência de letras. Contudo, a Tafsir al-Jalalayn, outro comentário clássico ao Corão, resume sucintamente a interpretação prevalecente: «Deus é que sabe o que quer dizer com essas letras.»

O versículo que sucede imediatamente estas letras contém uma chave para a doutrina islâmica: «This is the Scripture whereof there is no doubt.» O Corão não é para ser questionado ou julgado por padrões que se situem fora dele mesmo; bem pelo contrário, é o padrão pelo qual todas as outras coisas hão-de ser julgadas. Isto, está bem de ver, não é significativamente diferente do modo como muitas outras religiões consideram as suas Escrituras sagradas. Porém, não ocorreu no islão o desenvolvimento da crítica histórica e exegética que transformou a forma como os judeus e os cristãos compreendem as suas Escrituras presentemente. O Corão é um livro do qual não se pode duvidar e que não se pode questionar: quando um académico do islão, Suliman Bashear, ensinou aos seus alunos na Universidade Nacional An-Najah, em Nablus, que o Corão e o islão são produtos de um desenvolvimento histórico, não tendo sido revelados na sua forma acabada a Mafoma, os seus alunos defenestraram-no.

2:1-29 é uma extensiva explanação da perversidade daqueles que rejeitam a fé em Alá e faz ouvir vários temas que hão-de voltar a ecoar. O Corão, é-nos dito, é o guia para aqueles que acreditam no que foi revelado a Mafoma, assim como "no que foi revelado antes" do profeta (v. 4). Esta asserção envolve a pretensa assumpção muçulmana de que o Corão é a confirmação da Torá e dos Evangelhos, os quais transmitem a mesma mensagem que Mafoma recebe na revelação corânica (ver 5:44-48). Quando se constatou que a Torá e o Evangelho não concordavam com o Corão, surgiu a acusação de que os judeus e os cristãos tinham corrompido as suas Escrituras - o que constitui uma crença ortodoxa muçulmana presentemente. Muhammad Asad afirma-o claramente: «A religião do Corão só pode ser plenamente compreendida contra o pano de fundo das grandes religiões monoteístas que a precederam e que, de acordo com a fé muçulmana, encontram o seu clímax e a sua formulação definitiva na fé do islão.»

Um outro tema é o absoluto controlo de Alá sobre todas as coisas, inclusive a escolha individual entre acreditar ou não acreditar nele: «As to those who reject Faith, it is the same to them whether thou warn them or do not warn them; they will not believe. Allah hath set a seal on their hearts and on their hearing, and on their eyes is a veil; great is the penalty they (incur)» (vv. 6-7). Os Qadaris (1), do islão primitivo, postulavam que a humanidade dispunha de livre arbítrio e que, portanto, seria capaz de escolher entre fazer o bem e fazer o mal. Os seus opositores sustentavam que Alá determina tudo. Apesar de ambos os lados disporem de inúmeras citações corânicas para alicerçar as respectivas teses, as autoridades islâmicas acabaram por declarar o Qadarismo como herético, uma vez que limitava a absoluta soberania de Alá sobre todas as coisas. Aqueles que rejeitam a fé fazem-no porque Alá assim o deseja, de acordo com estes versos, não porque disponham de livre arbítrio. Diz Ibn Kathir: «Estes ayat (versículos) afirmam que aquele que, por determinação de Alá, é infeliz não há-de encontrar ninguém que o guie em direcção à felicidade e que aquele que Alá conduz ao erro, não há-de encontrar quem o guie.» (Uma boa panorâmica sobre a controvérsia dos Qadari pode seguir-se na obra do famigerado académico do islão Ignaz Goldziher’s Introduction to Islamic Theology and Law.)

Segue-se a condenação dos hipócritas e dos falsos crentes, os quais desgostaram Mafoma com frequência durante a sua vida profética (vv. 13-20). Surge, por fim, a asserção da sublimidade do Corão, de tal modo que os que duvidam são desafiados, caso duvidem da sua proveniência divina, a produzir uma surata como esta (v. 23). Muitos foram os que aceitaram o desafio, o qual é, evidentemente, do género de desafios que jamais serão bem sucedidos aos olhos de quem o lançou - «they could not produce the like thereof» (17:88).

2:25 apresenta os famosos jardins do Paraíso, onde os crentes hão de morar - assunto do qual falaremos mais adiante.

2:30-39 conta a história de Adão e Eva, de um modo sugestivo de que os ouvintes da recitação corânica já estariam familiarizados com o relato. Alá ordena aos anjos que se prostrem diante de Adão (v. 34), uma ordem que parece decorrer da afirmação bíblica de que o Homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, embora essa ideia não seja expressa nesta passagem do Corão. Segundo Ibn Kathir, «Alá afirmou a superior virtude de Adão em relação aos anjos ao ensinar-lhe, e não a eles, o nome de todas as coisas.» Satanás recusa prostrar-se, tornando-se, com essa decisão, incrédulo (v. 34) e tenta Adão e Eva com o fruto proibido. Alá promete fazer revelações para guiar a humanidade, avisando-a de que aqueles que ignorarem essas revelações serão punidos com o fogo do inferno.

Seguidamente, a surata dirige-se, nos versículos 40-75, aos Filhos de Israel, os quais desempenham um papel de grande relevo no Corão - e, não por acaso, na consciência islâmica moderna - de modo que dedicaremos o postal da próxima semana a blogá-los.

(1) - Para encontrar informações sobre esta corrente islâmica socorremo-nos da versão italiana desta série, Commento al Corano, tradução de Paolo Mantellini.

A partir do postal anterior, dedicado a Al-Fátiha, temos usado um Corão que possibilita a leitura em simultâneo das três traduções para língua inglesa usadas como referência por Robert Spencer, bastando para isso seleccionar as ditas traduções na caixa à esquerda encimada pela palavra English; ademais, esta versão permite visualizar versões noutras línguas, bastando seleccioná-las na caixa situada imediatamente abaixo da anteriormente indicada, encabeçada pelas palavras Other Languages, entre as quais o português, na mesma tradução do Corão online já indicado, a versão de Samir El-Hayek.



Texto original: Blogging the Qur'an: Sura 2, "The Cow," verses 1-39.