Blogando o Corão: Introdução
Para perceber os propósitos e os objectivos dos terroristas islâmicos da jihad, uma boa forma de começar talvez seja explorar o que eles próprios dizem acerca das razões por que fazem o que fazem e o que pretendem. Isto levar-nos-á ao Corão, o livro sagrado do islão. O jihadistas citam-no frequentemente e apresentam-se como aqueles que seguem o "verdadeiro islão", a genuína doutrina, tal como é ensinada no Corão e na tradição islâmica. Daí que, no decurso do meu trabalho de elucidação quanto aos objectivos dos jihadistas, tenho vindo a citar o Corão inúmeras vezes - e não há dia em que eu não seja acusado de "seleccionar falaciosamente" passagens violentas e de as citar "fora do seu contexto". Entretanto, o Council on American Islamic Relations e outras organizações islâmicas afirmam que, de modo a compreender a verdadeira e pacífica natureza do islão, devemos ler o Corão.
Por isso, ao longo dos próximos meses, lê-lo-ei e discuti-lo-ei numa série de postais. Integralmente. Nada de "selecções falaciosas" ou "descontextualizações". A coisa por inteiro, de uma ponta à outra. Alguns de vós podeis conhecer a série de David Plotz na Slate, "Blogging the Bible". A presente série será semelhante àquela, mas, em lugar de escrever simplesmente a minha opinião acerca de uma determinada passagem, farei referência, ao contrário de Plotz, a comentários - todos islâmicos - do Corão. Tentarei explicar de que modo os muçulmanos ortodoxos que estudam o Corão interpretam uma dada passagem e a importância que isso pode ter para os não-muçulmanos.
Precisaremos de um Corão. Aqui está um bom texto árabe/inglês. [Addendum: acrescento este Corão em árabe e inglês, (deste idioma estão disponíveis várias versões simultaneamente) com possibilidade de apresentar uma terceira língua, entre as quais o português (opções activáveis nas colunas à esquerda), e com audio da leitura dos versículos em árabe]. Na teologia islâmica tradicional, o Corão é, essencialmente e por inerência, um "Corão Árabe" (de acordo com a descrição que o próprio Corão faz de si mesmo repetidamente; ver: 12:2; 20:113; 39:28; 41:3; 41:44; 42:7; e 43:3). O seu significado pode ser transposto para outros idiomas, mas esses textos não são o Corão, o qual, não escrito em árabe, já não é o mesmo. Alguns académicos muçulmanos chegam a afirmar que o Corão não pode chegar a ser plenamente compreendido senão em árabe, mas a avalanche de traduções feitas por muçulmanos para muçulmanos que não sabem árabe (os quais hoje constituem a grande maioria), assim como para exercer o proselitismo entre não-muçulmanos enfraquecem o argumento. Aqui estão duas famigeradas traduções, as de Abdullah Yusuf Ali e de Mohammed Marmaduke Pickthall, acompanhadas por uma terceira de M. H. Shakir. Aqui está outra tradução famosa, a de Muhammad Asad. [E aqui uma antologia de dez traduções do Corão.] (N.T.: hiperligação quebrada)
[N.T.: eis duas versões do Corão em língua portuguesa. Em virtude das discrepâncias entre a versão portuguesa e as traduções de referência usadas por Spencer, optei por usar as citações do Corão feitas pelo autor, em inglês; as referências numéricas do capítulo e versículo permitirão ao leitor confrontar a versão inglesa com as traduções portuguesas.]
O Corão, de acordo com o pensamento islâmico clássico, é a cópia perfeita de um livro que existe no Céu desde sempre com Alá, o único Deus verdadeiro: "“it is a transcript of the eternal book [in Arabic, “mother of the book”] in Our keeping, sublime, and full of wisdom” (43:4)". O arcanjo Gabriel tê-lo-á revelado a Mafoma (1) (570-632), um mercador árabe. À semelhança de Jesus, Mafoma confiou a outros a tarefa de deixar registos escritos. Ao contrário de Jesus, Mafoma não é o autor da sua mensagem, servindo apenas de veículo de transmissão. O Corão é para os muçulmanos a pura Palavra de Alá, os quais apontam para o seu carácter poético como prova de que o Corão não é da autoria de Mafoma, o qual era analfabeto, mas do Todo Poderoso, o qual terá ditado todas as suas palavras. O muçulmano comum acredita que tudo o que se diz no livro é a absoluta verdade e que a mensagem do Corão é aplicável universal e eternamente.
Esta pretensão é muito mais ambiciosa que a dos cristãos em relação à Bíblia. Quando os cristãos, seja de que confissão for, dizem que a Bíblia é a Palavra de Deus, não pretendem dizer que Deus pronunciou as palavras que a constituem uma por uma e que a criação do texto dispensou qualquer intervenção humana - pelo contrário, os cristãos invocam o conceito de "inspiração", segundo o qual Deus exalou através de autores humanos, fazendo uso da sua sabedoria humana para comunicar o que quis. Porém, para os muçulmanos, o Corão é mais que inspirado. Não há, nem poderia haver no Corão uma passagem com a da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios 1:14-17: «14Dou graças a Deus por não ter baptizado nenhum de vós, a não ser Crispo e Gaio, 15para que ninguém diga que fostes baptizados em meu nome. 16Baptizei também a família de Estéfanes, mas, além destes, não sei se baptizei mais alguém. 17Na verdade, Cristo não me enviou a baptizar, mas a pregar o Evangelho, e sem recorrer à sabedoria da linguagem, para não esvaziar da sua eficácia a cruz de Cristo.» A memória imprecisa de Paulo demonstra a presença do elemento humano no Novo Testamento, o que, para os cristãos, não contraria, mas coexiste com o carácter inspirado do texto. Contudo, no Corão é apenas o próprio Alá quem fala (com algumas limitadas excepções). Não há elemento humano. O livro é a palavra divina pura e não adulterada.
É Alá, ele mesmo, quem o diz, no próprio Corão: “This is a mighty scripture. Falsehood cannot reach it from before or from behind” (41:41-2). É “free from any flaw” (39:28). Em suma, “it is the indubitable truth” (69:51). Alá - que, ao usar o plural majestático, não põe em causa, segundo os teólogos muçulmanos, a sua unidade absoluta -, proclama que “it was We that revealed the Koran, and shall Ourself preserve it” (15:9). Ler o Corão, porém, nem sempre é fácil. Dado que grande parte do livro consiste nas palavras que Alá dirige a Mafoma, é muitas vezes como estar a ouvir uma conversa entre duas pessoas que não conhecemos, falando sobre acontecimentos nos quais não estivemos envolvidos. Embora uma grande parte do que consta no Corão seja dito mais que uma vez, não é raro o leitor não conseguir perceber o que está a ser dito, nem porquê, sem nos socorrermos da tradição islâmica.
Para além disto, o Corão, no seu todo, não tem qualquer unidade narrativa, embora muitos capítulos tenham unidade interna. Excepção feita ao breve primeiro capítulo (sura/surata), os seus 114 capítulos são apresentados do mais longo para o mais curto. Nos capítulos mais longos contam-se histórias, dão-se leis e adverte-se os incrédulos, mas neles, e ao longo do livro, não há continuidade narrativa nem cronológica. Os capítulos mais breves, por seu turno, consistem em advertências poéticas e paralisantes sobre o inevitável julgamento divino. Quando li pela primeira vez o Corão e comecei a estudar o islão no final de 1980, início de 1981, estes capítulos poéticos atraíram a minha imaginação ao ponto de me levar a entrar, cada vez mais profundamente, noutros textos islâmicos.
Referir-me-ei às tradições islâmicas sempre que necessário, assim como a comentários tradicionais, de modo a esclarecer as diversas passagens. Ao chegarmos ao fim desta jornada, veremos mais claramente, estou em crer, o que anima os jihadistas - e talvez fiquemos a saber o que podemos e devemos fazer para lhes resistir.
Esta série será semanal - a ser publicada cada domingo no Jihad Watch - com actualizações aos postais, de acordo com as necessidades. Pretendo que esta seja uma exploração partilhada do Corão, uma conversa em dois sentidos. Razão pela qual agradeço os comentários e as críticas no espaço para isso reservado, por email, noutros blogues, e tentarei responder às questões e não deixar sem réplica os comentários, as críticas e os desafios mais pertinentes.
Na próxima semana: capítulo primeiro, al-Fatiha, a oração mais importante do islão.
Texto original: Blogging the Qur’an: Introduction
(1)- «Nos textos portugueses mais antigos, este antropónimo aparece grafado de variadíssimas formas, como Mafoma, Mafamede, Mafomede, Mafomade, Mahamed, Mahoma, Mahomet, Mahometes ou Mahometo, sendo Mafamede e Mafoma por ventura as mais divulgadas (de resto, a última forma é correlata do nome do profeta nas outras línguas ibéricas, sendo que em castelhano, catalão, galego e até basco, se diz Mahoma). Desde o século XIX, porém, que tais termos caíram completamente em desuso no português, sendo até considerados ofensivos, posto que o seu uso, nas crónicas antigas, se fez sempre associado num contexto de cruzada contra a religião muçulmana.»