Blogando o Corão: Sura 1, "A Abertura"
Al-Fátiha (A Abertura) é a primeira sura/surata (capítulo) do Corão e a oração mais usual do islão. Se o leitor for um piedoso muçulmano e reza as cinco orações diárias do preceito islâmico, recitará Al-Fátiha dezassete vezes no decurso dessas orações. De acordo com uma tradição islâmica, o profeta muçulmano, Mafoma, disse que Al-Fátiha superava tudo o que fora revelado por Alá na Torá, nos Evangelhos e no resto do Corão (Allah, "O Deus" em árabe, é a palavra usada por cristãos e judeus arabófonos para se referirem a Deus, assim como pelos muçulmanos). E, com efeito, Al-Fátiha condensa eficiente e eloquentemente muitos dos principais temas do Corão e do islão em geral: Alá é o "Senhor dos mundos", só ele deve ser adorado e só a ele se devem dirigir súplicas, é o juiz misericordioso de cada alma no dia do Juízo Final.
Na teologia islâmica, Alá é o autor de todas as palavras do Corão. A alguns pode parecer estranho que Alá diga algo como «louvado seja Alá, Senhor dos mundos», mas a interpretação islâmica tradicional é que Alá revelou esta oração a Mafoma logo no início da sua carreira profética (a qual começou no ano 610 AD, quando recebeu a primeira revelação de Alá por intermédio do arcanjo Gabriel - revelação registada no 96º capítulo do Corão) para que os muçulmanos soubessem como rezar.
É pelos seus dois últimos versos que Al-Fátiha suscita maior apreensão aos não-muçulmanos e pelos quais tem surgido ultimamente nas notícias. Um imã xiita, Husham Al-Husainy, suscitou polémica ao parafrasear esta passagem durante uma oração no encontro de Inverno do Comité Nacional do Partido Democrata, dando impressão de que estaria a rezar pela conversão ao islão dos representantes ali reunidos. O imã Yusuf Kavakci, da mesquita central de Dallas, rezou Al-Fatiha no Senado Estadual do Texas, dando azo a idênticas preocupações.
Os dois últimos versos de Al-Fátiha rogam a Alá: «6. Mostra-nos a via recta, 7. a via dos que favoreceste; não a dos que mereceram a Tua ira, nem a dos que se extraviaram.» [N.T.: tradução nossa do texto em inglês deste comentário, a tradução de Pickthal]. A interpretação islâmica tradicional desta passagem é que a "via recta" é o islão - cf. o livro do apologista do islão, John Esposito: "The Straight Path". Os que mereceram a ira de Alá são os judeus e os que se extraviaram são os cristãos.
O comentador clássico do Corão, Ibn Kathir explica que «as duas vias que Ele descreveu neste passo são ambas erráticas» e que aquelas «duas vias são as dos cristãos e dos judeus, facto que o crente deve estar bem ciente, de modo a poder evitá-los. A via dos crentes é o conhecimento da verdade e o ser-lhe conforme. Em comparação, os judeus abandonaram a prática da religião, enquanto os cristãos perderam a verdadeira sabedoria. Eis a razão por que a "ira" se abateu sobre os judeus, enquanto a descrição dos cristãos como "extraviados" é mais apropriada.»
A interpretação de Ibn Kathir desta passagem não é uma interpretação singular e "extremista". Na verdade, a maioria dos comentadores muçulmanos acredita que os judeus são os que mereceram a ira de Alá e que os cristãos são os que se extraviaram. Esta perspectiva é a de Tabari, de Zamakhshari, de Tafsir al-Jalalayn, de Tanwir al-Miqbas min Tafsir Ibn Abbas, a de Ibn Arabi, para além de Ibn Kathir. Uma outra perspectiva, contrastante mas não maioritária, é a de Nisaburi, o qual sustenta que «aqueles que mereceram a ira de Alá são as pessoas do descuido e os que se extraviaram são as pessoas da intemperança.»
Os wahhabistas foram criticados há alguns anos por ter acrescentado as expressões "tal como os judeus" e "tal como os cristãos", entre parêntesis, a esta passagem, num Corão editado na Arábia Saudita. Alguns comentadores ocidentais julgaram que os sauditas teriam concebido esta interpretação e, de igual modo, teriam dado origem à noção da hostilidade do Corão para com os judeus e cristãos. Os muçulmanos de todo o mundo aprendem como um dado adquirido que a oração fundamental da sua fé anatematiza os judeus e os cristãos.
Infelizmente, esta interpretação é venerável e ortodoxa na teologia islâmica. A introdução da referida explicitação entre parêntesis a uma tradução dificilmente afectaria a atitude dos muçulmanos, visto que o texto em árabe é, sempre e em toda a parte, normativo, em qualquer circunstância, e dado que tantos comentários veiculam a ideia de que judeus e cristãos são censurados na passagem corânica em questão. Dezassete vezes por dia, pelos piedosos.
Note-se que não estou a afirmar que a interpretação anti-semítica e anti-cristã de Al-Fátiha é a interpretação "correcta". Embora não pense que os textos religiosos sejam infinitamente maleáveis e admitam qualquer interpretação que o leitor lhes deseje atribuir, como alguns parecem crer, neste caso a leitura de Nisaburi tem tanto fundamento como a outra: não há nada no texto, em si mesmo, que conduza à conclusão inevitável de que se fala dos judeus e dos cristãos. E há que assinalar que, no seu colossal comentário ao Corão, significativamente chamado Fi Zilal al-Qur'an ("Na Sombra do Corão"), o teórico da jihad, activo no séc. XX, Sayyid Qutb, não faz qualquer menção aos judeus nem aos cristãos a propósito desta passagem. Por outro lado, a perspectiva islâmica segundo a qual os judeus mereceram a ira de Alá e os cristãos se extraviaram não decorre apenas desta passagem. Os judeus mereceram a ira de Alá ao rejeitarem Mafoma (2:87-90) e os cristãos extraviaram-se ao proclamar a divindade de Cristo (5:72).
A Hadith - as palavras e feitos de Mafoma e dos primeiros muçulmanos, pelos próprios narrados, também contêm material ligando os judeus à ira de Alá e os cristãos à maldição resultante de se desviarem da via recta. (Os judeus também são amaldiçoados, de acordo com o Corão 2:89 e uns e outros são amaldiçoados, de acordo com 9:30). Uma hadith conta que um dos primeiros muçulmanos, Zaid bin 'Amr bin Nufail, nas suas viagens, conheceu estudiosos do judaísmo e do cristianismo. O estudioso do judaísmo disse-lhe: «Não adoptarás a nossa religião se não receberes a tua parte da ira de Alá.»; e o cristão disse-lhe: «Não adoptarás a nossa religião se não obtiveres uma parte da maldição de Alá.» Zaid, escusado será dizer, tornou-se muçulmano.
À luz de passagens como estas e de outras semelhantes não surpreenderá que tantos comentadores muçulmanos tenham interpretado Al-Fátiha como contendo as referidas perspectivas.
Próximo capítulo: uma introdução ao capítulo mais longo do Corão, a surata 2, "A Vaca", e uma breve panorâmica dos versos 1-39.
Texto original: Blogging the Qur'an: Sura 1, "The Opening"
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
Blogando o Corão: Introdução
Blogando o Corão: Introdução
Para perceber os propósitos e os objectivos dos terroristas islâmicos da jihad, uma boa forma de começar talvez seja explorar o que eles próprios dizem acerca das razões por que fazem o que fazem e o que pretendem. Isto levar-nos-á ao Corão, o livro sagrado do islão. O jihadistas citam-no frequentemente e apresentam-se como aqueles que seguem o "verdadeiro islão", a genuína doutrina, tal como é ensinada no Corão e na tradição islâmica. Daí que, no decurso do meu trabalho de elucidação quanto aos objectivos dos jihadistas, tenho vindo a citar o Corão inúmeras vezes - e não há dia em que eu não seja acusado de "seleccionar falaciosamente" passagens violentas e de as citar "fora do seu contexto". Entretanto, o Council on American Islamic Relations e outras organizações islâmicas afirmam que, de modo a compreender a verdadeira e pacífica natureza do islão, devemos ler o Corão.
Por isso, ao longo dos próximos meses, lê-lo-ei e discuti-lo-ei numa série de postais. Integralmente. Nada de "selecções falaciosas" ou "descontextualizações". A coisa por inteiro, de uma ponta à outra. Alguns de vós podeis conhecer a série de David Plotz na Slate, "Blogging the Bible". A presente série será semelhante àquela, mas, em lugar de escrever simplesmente a minha opinião acerca de uma determinada passagem, farei referência, ao contrário de Plotz, a comentários - todos islâmicos - do Corão. Tentarei explicar de que modo os muçulmanos ortodoxos que estudam o Corão interpretam uma dada passagem e a importância que isso pode ter para os não-muçulmanos.
Precisaremos de um Corão. Aqui está um bom texto árabe/inglês. [Addendum: acrescento este Corão em árabe e inglês, (deste idioma estão disponíveis várias versões simultaneamente) com possibilidade de apresentar uma terceira língua, entre as quais o português (opções activáveis nas colunas à esquerda), e com audio da leitura dos versículos em árabe]. Na teologia islâmica tradicional, o Corão é, essencialmente e por inerência, um "Corão Árabe" (de acordo com a descrição que o próprio Corão faz de si mesmo repetidamente; ver: 12:2; 20:113; 39:28; 41:3; 41:44; 42:7; e 43:3). O seu significado pode ser transposto para outros idiomas, mas esses textos não são o Corão, o qual, não escrito em árabe, já não é o mesmo. Alguns académicos muçulmanos chegam a afirmar que o Corão não pode chegar a ser plenamente compreendido senão em árabe, mas a avalanche de traduções feitas por muçulmanos para muçulmanos que não sabem árabe (os quais hoje constituem a grande maioria), assim como para exercer o proselitismo entre não-muçulmanos enfraquecem o argumento. Aqui estão duas famigeradas traduções, as de Abdullah Yusuf Ali e de Mohammed Marmaduke Pickthall, acompanhadas por uma terceira de M. H. Shakir. Aqui está outra tradução famosa, a de Muhammad Asad. [E aqui uma antologia de dez traduções do Corão.] (N.T.: hiperligação quebrada)
[N.T.: eis duas versões do Corão em língua portuguesa. Em virtude das discrepâncias entre a versão portuguesa e as traduções de referência usadas por Spencer, optei por usar as citações do Corão feitas pelo autor, em inglês; as referências numéricas do capítulo e versículo permitirão ao leitor confrontar a versão inglesa com as traduções portuguesas.]
O Corão, de acordo com o pensamento islâmico clássico, é a cópia perfeita de um livro que existe no Céu desde sempre com Alá, o único Deus verdadeiro: "“it is a transcript of the eternal book [in Arabic, “mother of the book”] in Our keeping, sublime, and full of wisdom” (43:4)". O arcanjo Gabriel tê-lo-á revelado a Mafoma (1) (570-632), um mercador árabe. À semelhança de Jesus, Mafoma confiou a outros a tarefa de deixar registos escritos. Ao contrário de Jesus, Mafoma não é o autor da sua mensagem, servindo apenas de veículo de transmissão. O Corão é para os muçulmanos a pura Palavra de Alá, os quais apontam para o seu carácter poético como prova de que o Corão não é da autoria de Mafoma, o qual era analfabeto, mas do Todo Poderoso, o qual terá ditado todas as suas palavras. O muçulmano comum acredita que tudo o que se diz no livro é a absoluta verdade e que a mensagem do Corão é aplicável universal e eternamente.
Esta pretensão é muito mais ambiciosa que a dos cristãos em relação à Bíblia. Quando os cristãos, seja de que confissão for, dizem que a Bíblia é a Palavra de Deus, não pretendem dizer que Deus pronunciou as palavras que a constituem uma por uma e que a criação do texto dispensou qualquer intervenção humana - pelo contrário, os cristãos invocam o conceito de "inspiração", segundo o qual Deus exalou através de autores humanos, fazendo uso da sua sabedoria humana para comunicar o que quis. Porém, para os muçulmanos, o Corão é mais que inspirado. Não há, nem poderia haver no Corão uma passagem com a da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios 1:14-17: «14Dou graças a Deus por não ter baptizado nenhum de vós, a não ser Crispo e Gaio, 15para que ninguém diga que fostes baptizados em meu nome. 16Baptizei também a família de Estéfanes, mas, além destes, não sei se baptizei mais alguém. 17Na verdade, Cristo não me enviou a baptizar, mas a pregar o Evangelho, e sem recorrer à sabedoria da linguagem, para não esvaziar da sua eficácia a cruz de Cristo.» A memória imprecisa de Paulo demonstra a presença do elemento humano no Novo Testamento, o que, para os cristãos, não contraria, mas coexiste com o carácter inspirado do texto. Contudo, no Corão é apenas o próprio Alá quem fala (com algumas limitadas excepções). Não há elemento humano. O livro é a palavra divina pura e não adulterada.
É Alá, ele mesmo, quem o diz, no próprio Corão: “This is a mighty scripture. Falsehood cannot reach it from before or from behind” (41:41-2). É “free from any flaw” (39:28). Em suma, “it is the indubitable truth” (69:51). Alá - que, ao usar o plural majestático, não põe em causa, segundo os teólogos muçulmanos, a sua unidade absoluta -, proclama que “it was We that revealed the Koran, and shall Ourself preserve it” (15:9). Ler o Corão, porém, nem sempre é fácil. Dado que grande parte do livro consiste nas palavras que Alá dirige a Mafoma, é muitas vezes como estar a ouvir uma conversa entre duas pessoas que não conhecemos, falando sobre acontecimentos nos quais não estivemos envolvidos. Embora uma grande parte do que consta no Corão seja dito mais que uma vez, não é raro o leitor não conseguir perceber o que está a ser dito, nem porquê, sem nos socorrermos da tradição islâmica.
Para além disto, o Corão, no seu todo, não tem qualquer unidade narrativa, embora muitos capítulos tenham unidade interna. Excepção feita ao breve primeiro capítulo (sura/surata), os seus 114 capítulos são apresentados do mais longo para o mais curto. Nos capítulos mais longos contam-se histórias, dão-se leis e adverte-se os incrédulos, mas neles, e ao longo do livro, não há continuidade narrativa nem cronológica. Os capítulos mais breves, por seu turno, consistem em advertências poéticas e paralisantes sobre o inevitável julgamento divino. Quando li pela primeira vez o Corão e comecei a estudar o islão no final de 1980, início de 1981, estes capítulos poéticos atraíram a minha imaginação ao ponto de me levar a entrar, cada vez mais profundamente, noutros textos islâmicos.
Referir-me-ei às tradições islâmicas sempre que necessário, assim como a comentários tradicionais, de modo a esclarecer as diversas passagens. Ao chegarmos ao fim desta jornada, veremos mais claramente, estou em crer, o que anima os jihadistas - e talvez fiquemos a saber o que podemos e devemos fazer para lhes resistir.
Esta série será semanal - a ser publicada cada domingo no Jihad Watch - com actualizações aos postais, de acordo com as necessidades. Pretendo que esta seja uma exploração partilhada do Corão, uma conversa em dois sentidos. Razão pela qual agradeço os comentários e as críticas no espaço para isso reservado, por email, noutros blogues, e tentarei responder às questões e não deixar sem réplica os comentários, as críticas e os desafios mais pertinentes.
Na próxima semana: capítulo primeiro, al-Fatiha, a oração mais importante do islão.
Texto original: Blogging the Qur’an: Introduction
(1)- «Nos textos portugueses mais antigos, este antropónimo aparece grafado de variadíssimas formas, como Mafoma, Mafamede, Mafomede, Mafomade, Mahamed, Mahoma, Mahomet, Mahometes ou Mahometo, sendo Mafamede e Mafoma por ventura as mais divulgadas (de resto, a última forma é correlata do nome do profeta nas outras línguas ibéricas, sendo que em castelhano, catalão, galego e até basco, se diz Mahoma). Desde o século XIX, porém, que tais termos caíram completamente em desuso no português, sendo até considerados ofensivos, posto que o seu uso, nas crónicas antigas, se fez sempre associado num contexto de cruzada contra a religião muçulmana.»
Para perceber os propósitos e os objectivos dos terroristas islâmicos da jihad, uma boa forma de começar talvez seja explorar o que eles próprios dizem acerca das razões por que fazem o que fazem e o que pretendem. Isto levar-nos-á ao Corão, o livro sagrado do islão. O jihadistas citam-no frequentemente e apresentam-se como aqueles que seguem o "verdadeiro islão", a genuína doutrina, tal como é ensinada no Corão e na tradição islâmica. Daí que, no decurso do meu trabalho de elucidação quanto aos objectivos dos jihadistas, tenho vindo a citar o Corão inúmeras vezes - e não há dia em que eu não seja acusado de "seleccionar falaciosamente" passagens violentas e de as citar "fora do seu contexto". Entretanto, o Council on American Islamic Relations e outras organizações islâmicas afirmam que, de modo a compreender a verdadeira e pacífica natureza do islão, devemos ler o Corão.
Por isso, ao longo dos próximos meses, lê-lo-ei e discuti-lo-ei numa série de postais. Integralmente. Nada de "selecções falaciosas" ou "descontextualizações". A coisa por inteiro, de uma ponta à outra. Alguns de vós podeis conhecer a série de David Plotz na Slate, "Blogging the Bible". A presente série será semelhante àquela, mas, em lugar de escrever simplesmente a minha opinião acerca de uma determinada passagem, farei referência, ao contrário de Plotz, a comentários - todos islâmicos - do Corão. Tentarei explicar de que modo os muçulmanos ortodoxos que estudam o Corão interpretam uma dada passagem e a importância que isso pode ter para os não-muçulmanos.
Precisaremos de um Corão. Aqui está um bom texto árabe/inglês. [Addendum: acrescento este Corão em árabe e inglês, (deste idioma estão disponíveis várias versões simultaneamente) com possibilidade de apresentar uma terceira língua, entre as quais o português (opções activáveis nas colunas à esquerda), e com audio da leitura dos versículos em árabe]. Na teologia islâmica tradicional, o Corão é, essencialmente e por inerência, um "Corão Árabe" (de acordo com a descrição que o próprio Corão faz de si mesmo repetidamente; ver: 12:2; 20:113; 39:28; 41:3; 41:44; 42:7; e 43:3). O seu significado pode ser transposto para outros idiomas, mas esses textos não são o Corão, o qual, não escrito em árabe, já não é o mesmo. Alguns académicos muçulmanos chegam a afirmar que o Corão não pode chegar a ser plenamente compreendido senão em árabe, mas a avalanche de traduções feitas por muçulmanos para muçulmanos que não sabem árabe (os quais hoje constituem a grande maioria), assim como para exercer o proselitismo entre não-muçulmanos enfraquecem o argumento. Aqui estão duas famigeradas traduções, as de Abdullah Yusuf Ali e de Mohammed Marmaduke Pickthall, acompanhadas por uma terceira de M. H. Shakir. Aqui está outra tradução famosa, a de Muhammad Asad. [E aqui uma antologia de dez traduções do Corão.] (N.T.: hiperligação quebrada)
[N.T.: eis duas versões do Corão em língua portuguesa. Em virtude das discrepâncias entre a versão portuguesa e as traduções de referência usadas por Spencer, optei por usar as citações do Corão feitas pelo autor, em inglês; as referências numéricas do capítulo e versículo permitirão ao leitor confrontar a versão inglesa com as traduções portuguesas.]
O Corão, de acordo com o pensamento islâmico clássico, é a cópia perfeita de um livro que existe no Céu desde sempre com Alá, o único Deus verdadeiro: "“it is a transcript of the eternal book [in Arabic, “mother of the book”] in Our keeping, sublime, and full of wisdom” (43:4)". O arcanjo Gabriel tê-lo-á revelado a Mafoma (1) (570-632), um mercador árabe. À semelhança de Jesus, Mafoma confiou a outros a tarefa de deixar registos escritos. Ao contrário de Jesus, Mafoma não é o autor da sua mensagem, servindo apenas de veículo de transmissão. O Corão é para os muçulmanos a pura Palavra de Alá, os quais apontam para o seu carácter poético como prova de que o Corão não é da autoria de Mafoma, o qual era analfabeto, mas do Todo Poderoso, o qual terá ditado todas as suas palavras. O muçulmano comum acredita que tudo o que se diz no livro é a absoluta verdade e que a mensagem do Corão é aplicável universal e eternamente.
Esta pretensão é muito mais ambiciosa que a dos cristãos em relação à Bíblia. Quando os cristãos, seja de que confissão for, dizem que a Bíblia é a Palavra de Deus, não pretendem dizer que Deus pronunciou as palavras que a constituem uma por uma e que a criação do texto dispensou qualquer intervenção humana - pelo contrário, os cristãos invocam o conceito de "inspiração", segundo o qual Deus exalou através de autores humanos, fazendo uso da sua sabedoria humana para comunicar o que quis. Porém, para os muçulmanos, o Corão é mais que inspirado. Não há, nem poderia haver no Corão uma passagem com a da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios 1:14-17: «14Dou graças a Deus por não ter baptizado nenhum de vós, a não ser Crispo e Gaio, 15para que ninguém diga que fostes baptizados em meu nome. 16Baptizei também a família de Estéfanes, mas, além destes, não sei se baptizei mais alguém. 17Na verdade, Cristo não me enviou a baptizar, mas a pregar o Evangelho, e sem recorrer à sabedoria da linguagem, para não esvaziar da sua eficácia a cruz de Cristo.» A memória imprecisa de Paulo demonstra a presença do elemento humano no Novo Testamento, o que, para os cristãos, não contraria, mas coexiste com o carácter inspirado do texto. Contudo, no Corão é apenas o próprio Alá quem fala (com algumas limitadas excepções). Não há elemento humano. O livro é a palavra divina pura e não adulterada.
É Alá, ele mesmo, quem o diz, no próprio Corão: “This is a mighty scripture. Falsehood cannot reach it from before or from behind” (41:41-2). É “free from any flaw” (39:28). Em suma, “it is the indubitable truth” (69:51). Alá - que, ao usar o plural majestático, não põe em causa, segundo os teólogos muçulmanos, a sua unidade absoluta -, proclama que “it was We that revealed the Koran, and shall Ourself preserve it” (15:9). Ler o Corão, porém, nem sempre é fácil. Dado que grande parte do livro consiste nas palavras que Alá dirige a Mafoma, é muitas vezes como estar a ouvir uma conversa entre duas pessoas que não conhecemos, falando sobre acontecimentos nos quais não estivemos envolvidos. Embora uma grande parte do que consta no Corão seja dito mais que uma vez, não é raro o leitor não conseguir perceber o que está a ser dito, nem porquê, sem nos socorrermos da tradição islâmica.
Para além disto, o Corão, no seu todo, não tem qualquer unidade narrativa, embora muitos capítulos tenham unidade interna. Excepção feita ao breve primeiro capítulo (sura/surata), os seus 114 capítulos são apresentados do mais longo para o mais curto. Nos capítulos mais longos contam-se histórias, dão-se leis e adverte-se os incrédulos, mas neles, e ao longo do livro, não há continuidade narrativa nem cronológica. Os capítulos mais breves, por seu turno, consistem em advertências poéticas e paralisantes sobre o inevitável julgamento divino. Quando li pela primeira vez o Corão e comecei a estudar o islão no final de 1980, início de 1981, estes capítulos poéticos atraíram a minha imaginação ao ponto de me levar a entrar, cada vez mais profundamente, noutros textos islâmicos.
Referir-me-ei às tradições islâmicas sempre que necessário, assim como a comentários tradicionais, de modo a esclarecer as diversas passagens. Ao chegarmos ao fim desta jornada, veremos mais claramente, estou em crer, o que anima os jihadistas - e talvez fiquemos a saber o que podemos e devemos fazer para lhes resistir.
Esta série será semanal - a ser publicada cada domingo no Jihad Watch - com actualizações aos postais, de acordo com as necessidades. Pretendo que esta seja uma exploração partilhada do Corão, uma conversa em dois sentidos. Razão pela qual agradeço os comentários e as críticas no espaço para isso reservado, por email, noutros blogues, e tentarei responder às questões e não deixar sem réplica os comentários, as críticas e os desafios mais pertinentes.
Na próxima semana: capítulo primeiro, al-Fatiha, a oração mais importante do islão.
Texto original: Blogging the Qur’an: Introduction
(1)- «Nos textos portugueses mais antigos, este antropónimo aparece grafado de variadíssimas formas, como Mafoma, Mafamede, Mafomede, Mafomade, Mahamed, Mahoma, Mahomet, Mahometes ou Mahometo, sendo Mafamede e Mafoma por ventura as mais divulgadas (de resto, a última forma é correlata do nome do profeta nas outras línguas ibéricas, sendo que em castelhano, catalão, galego e até basco, se diz Mahoma). Desde o século XIX, porém, que tais termos caíram completamente em desuso no português, sendo até considerados ofensivos, posto que o seu uso, nas crónicas antigas, se fez sempre associado num contexto de cruzada contra a religião muçulmana.»
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