quinta-feira, 4 de março de 2010

Blogando o Alcorão: surata 2, "A Vaca", versículos 141-210

Blogando o Alcorão: surata 2, "A Vaca", versículos 141-210

Prosseguindo o nosso itinerário através de «A Vaca», a segunda e a mais extensa surata do Alcorão, deparamos, nos versículos 141-150, com a questão da qibla, a orientação geográfica da oração. Os muçulmanos são instruídos, daqui em diante, a voltar-se para a Mesquita Sagrada de Meca quando rezam (v. 150), quando, anteriormente, se associavam aos judeus voltando-se para Jerusalém. Esta mudança parece ter ocorrido uma vez terminadas as tentativas de Mafoma(1) para convencer os judeus de que era um profeta na linhagem dos profetas judaicos. Só «os néscios» (v. 142) se opuseram a esta mudança — ou seja, os judeus: quanto a esta dedução, o comentador relativamente moderado Muhammad Asad, assim como o comparativamente mais duro mufti Muhammad Aashiq Ilahi Bulandshahri estão de acordo. Asad afirma: «Este "virar de costas" a Jerusalém desagradou, evidentemente aos judeus de Medina, os quais se devem ter sentido confortados ao ver os muçulmanos voltar-se em oração para a sua cidade santa; e é a eles que a primeira frase desta passagem se refere». Alá prossegue criticando os judeus e os cristãos por cederem aos seus «seus [vãos] desejos» (cf. Yusuf Ali: «their (vain) desires») mesmo sabedores de que a qibla de Mafoma vem de Alá (vv. 144-146).

Vimos anteriormente que, no versículo 106, Alá declarou que quando abrogasse um versículo o substituiria por um melhor, e vimos também que alguns muçulmanos crêem que se esta disposição se refere a versículos do Alcorão, enquanto outros muçulmanos julgam tratar-se de uma referência à superação da Bíblia pelo Alcorão. A mudança na qibla tem alguma relação com esta questão. Ibn Abbas — primo de Mafoma e figura importante, de reconhecida autoridade, no islão incipiente —, afirma que «a primeira passagem a ser abrogada no Alcorão foi sobre a qibla». No entanto, nenhuma passagem do Alcorão determina que a oração se deve fazer voltado para Jerusalém, pelo que devemos estar em presença da abrogação de uma regra extra-alcorânica. Havemos de voltar à questão da abrogação em contextos diversos.

Alá apresenta a nova qibla como sendo um presente especialmente para Mafoma, uma nova direcção que o «satisfaça» (v. 144). Esta é uma das várias passagens do Alcorão que apontam para uma especial solicitude de Alá para com Mafoma; um outro exemplo dessa solicitude é a delicada repreensão que Alá dirige a Mafoma por este se ter inicialmente recusado a casar com a sua ex-nora, contra a vontade de Alá (v. 33:37). Tais passagens levaram a que os não-crentes pensassem que Mafoma estaria a usufruir das vantagens pessoais decorrentes da sua condição de profeta, mas, para os muçulmanos, estas passagens sublinham o especial estatuto de Mafoma: os pormenores da sua vida, até as suas aspirações — o seu desejo de rezar voltado para a Caabá — são veículos através dos quais Alá revela verdades eternas e leis divinas. E o seu exemplo é normativo. Muqtedar Khan do Centro para o Estudo do Islão e da Democracia (Center for the Study of Islam and Democracy) explica: «Nenhum líder religioso exerce tamanha influência sobre os seus seguidores como Mafoma (que a paz esteja com ele), o último profeta do islão... Tanto assim, que as palavras, os feitos e os silêncios (aquilo que ele viu e não interditou) de Mafoma tornou-se fonte autónoma de lei islâmica. Os muçulmanos, não só obedecem, mas tentam emular e imitar o seu Profeta em todos os aspectos do seu dia-a-dia, como parte da sua observância religiosa. Deste modo, Mafoma é o veículo e também a fonte da lei divina».

Os versículos 151-157 incentivam os crentes a ser perseverantes; o versículo 158 sanciona uma prática pré-islâmica, durante o Hajj, a peregrinação a Meca; e os versículos 159-177 recuperam como tema a perversidade dos incrédulos. Aqueles que rejeitam o islão chamam sobre si as maldições de Alá, «dos anjos e de toda a humanidade» (v. 161), e o inferno será a sua morada eterna (v. 162; cf. Pickthall: «They ever dwell therein.»). Em contrapartida, o fardo dos fiéis não é pesado. Apenas têm que se abster de comer determinados alimentos, entre os quais o porco (v. 173). Alguns, entre os infiéis, teimam em ocultar as revelações feitas por Alá (v. 174). Aqueles que disputam acerca do que Alá revelou estão em «cisma profundo» (v. 176). O tafsir al-Jalalayn declara que quem o faz são, novamente, os judeus.

Os versículos 177-203 legislam sobre diversas matérias: zakat (esmola), o jejum do Ramadão, a Hajj e a jihad. O versículo 178 define a lei da retaliação (qisas) por homicídio: a vida da vítima deve ser resgatada por igual valor, pena que pode ser remida sob a forma de dinheiro-de-sangue (diyah): um pagamento para compensar a perda sofrida. Na lei islâmica (sharia) este montante compensatório varia de acordo com a identidade da vítima. «Umdat al-Salik» (A confiança do viajante), um manual para a aplicação da sharia — o qual, de acordo com a prestigiada Universidade Al-Azhar, situada no Cairo, está conforme «prática e a fé da comunidade sunita ortodoxa» —, determina que o montante a ser pago pela morte de uma mulher é metade do que há-de ser pago pela de um homem e pela morte de um judeu ou de um cristão, um terço do valor a pagar pela vida de um muçulmano de sexo masculino (o4.9). Para uma explicação sobre esta matéria, leiam-se as palavras do xeque sufi Sultanhussein Tabandeh.

Os versículos 190-193 estão entre os mais importantes do Alcorão no que concerne à jihad (guerra santa). O versículo 190, «não pratiqueis agressão», é invocado, hoje em dia, com frequência, para demonstrar que a jihad pode ser apenas defensiva. Asad afirma que «este versículo e o seguinte estabelecem, de modo inequívoco, que apenas a auto-defesa (no sentido mais lato da expressão) confere aos muçulmanos autorização para fazer a guerra.» Contudo, o tafsir al-Jalalayn afirma que este versículo foi abrogado pelo versículo 9:1, o qual anula qualquer tratado celebrado entre os muçulmanos e os não-crentes. Ibn Kathir, por seu turno, não considera o versículo revogado.

O que vem a ser uma guerra defensiva? Um indício para esclarecer esta dúvida encontra-se no versículo 193: «E combatei-os até terminar a perseguição e prevalecer a religião de Deus. (...)» Ibn Ishaq explica que o significado deste versículo é que os muçulmanos devem lutar contra os infiéis «até que apenas Deus seja adorado». Diz Bulandshahri: «Os pecados mais graves são a infidelidade (kufr) e o politeísmo (shirk), os quais consistem em rebeliões contra Alá, O Criador. Para erradicar estes pecados, aos muçulmanos é exigido fazer guerra até que não exista nem infidelidade, nem politeísmo no mundo e que a única religião seja a de Alá». Este conflito seria essencialmente defensivo, contra as agressões da infidelidade: se para os muçulmanos a guerra é um imperativo até que a infidelidade seja extinta, a sua mera presença constitui agressão suficiente para permitir o início de hostilidades. Este é um dos fundamentos para o conceito supremacionista segundo o qual os muçulmanos devem travar guerra contra os infiéis até que eles se convertam ao islão, ou sejam subjugados sob o domínio da lei islâmica, tal como o versículo 9: 29 determina explicitamente. Como formula Mafoma, o Profeta do Islão: «Foi-me ordenado que lute contra todo e qualquer um até que testemunhem que não há Deus senão Alá, e creiam que eu sou o mensageiro (do Senhor) e acreditem em tudo o que eu lhes trouxe. E quando o fizerem, ao seu sangue e às suas riquezas será garantida protecção em meu nome, excepto que tal (o derramamento de sangue ou o despojar da propriedade) se justifique por lei, e as suas contas serão prestadas a Alá». (Hadith Sahih Muslim, Livro 1, Capítulo 9, Número 29-35). Deste modo, pode-se depreender que se alguém não aceita Mafoma como profeta, o seu sangue e as suas riquezas não estão a salvo daqueles que lêem estas palavras como sendo as palavras de um mensageiro do Deus único e verdadeiro.

Os versículos 204-210 advertem os crentes para que não duvidem, não apostatem, nem adiram ao islão com reservas. De seguida, dá-se início ao escrutínio de uma série de questões colocadas a Mafoma pelos seus seguidores — em cujas respostas revelou, entre outras coisas, o prodigioso significado da frase «a perseguição é pior que o morticínio» (a qual já surgira no versículo 2:191). É justamente aqui que reataremos este comentário na próxima entrada.

(1) - «Nos textos portugueses mais antigos, este antropónimo aparece grafado de variadíssimas formas, como Mafoma, Mafamede, Mafomede, Mafomade, Mahamed, Mahoma, Mahomet, Mahometes ou Mahometo, sendo Mafamede e Mafoma por ventura as mais divulgadas (de resto, a última forma é correlata do nome do profeta nas outras línguas ibéricas, sendo que em castelhano, catalão, galego e até basco, se diz Mahoma). Desde o século XIX, porém, que tais termos caíram completamente em desuso no português, sendo até considerados ofensivos, posto que o seu uso, nas crónicas antigas, se fez sempre associado num contexto de cruzada contra a religião muçulmana


Sugestão de leitura: The Politically Incorrect Guide to Islam (and The Crusades) de Robert Spencer.

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terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Blogando o Alcorão: surata 2, "A Vaca", versículos 75-140

Blogando o Alcorão: surata 2, "A Vaca", versículos 75-140

No segmento seguinte da surata 2, versículos 75-105, prossegue a crítica do Alcorão aos judeus. Quando lemos declarações de líderes do Hamas ou de Mahmoud Ahmadinejad acerca de Israel, devemos ter presente que a sua visão de Israel se faz através de um prisma alcorânico. Estas pessoas, se fizeram estudos alcorânicos, aprenderam que os judeus são os mais perversos e culpáveis — e também os mais diligentes e persistentes — inimigos de Ala, de Mafoma(1) e dos muçulmanos.

No versículo 75, Ala pergunta aos muçulmanos como conseguem ter alguma expectativa de «que os judeus creiam em vós, sendo que alguns deles escutavam as palavras de Deus e, depois de as terem compreendido, alteravam-nas conscientemente?» No seu Tafsir Anwar al-Bayan, o mufti indiano do séc. XX Muhammad Aashiq Ilahi Bulandshahri nota que alguns comentadores «mencionam que este versículo se refere à adulteração da Torá. Os mestres judeus costumavam aceitar subornos a fim de alterar certas injunções, de modo a que a Escritura se adaptasse aos seus desejos». Elaborando esta asserção, em relação ao versículo 79, Bulandshahri afirma que «os judeus cometem um duplo pecado ao alterar a escritura de Alá e ao aceitar um suborno».
Esta é uma posição tradicional : o Tafsir al-Jalalayn declara que os judeus «alteraram a descrição do Profeta na Torá, assim como o versículo da "lapidação" e outros pormenores, e os reescreveram de forma distinta da qual foram revelados».

Na sua arrogância, os judeus julgam que permanecerão no inferno apenas durante alguns dias (versículo 80). Bukhari conta que, depois de terem sido derrotados por Mafoma, os judeus de Khaibar — um oásis da Arábia —, lhe preparam um carneiro assado e o envenenaram. Pressentindo o estratagema, Mafoma convocou os judeus e interrogou-os. No decurso deste interrogatório, eles disseram-lhe: «Permaneceremos no fogo infernal por um curto período e, depois disso, vós (muçulmanos) tomareis o nosso lugar». Mafoma respondeu com indignação: «Sereis malditos e humilhados no inferno! Por Alá, nunca tomaremos o vosso lugar nele» e revelou que sabia do seu estratagema para o envenenar.

Os versículos 81-105 recordam, mais uma vez, aos judeus, as graças que receberam de Alá, as quais a maioria deles «renegou desdenhosamente» (v. 83), e criticam-nos com severidade pela sua obstinação e desobediência. O versículo 85 resume vários desses actos de desobediência, culminando na asserção de que os judeus acreditam «apenas em parte» das suas próprias escrituras sagradas e «rejeitam o restante». Ibn Kathir afirma que os judeus rejeitaram parte da Torá e ainda que: «não se deve acreditar neles no que respeita à descrição do Mensageiro de Alá, à sua vinda, à expulsão dele da sua terra, à sua Hegira, e acerca do resto da informação que os anteriores profetas lhes transmitiram sobre ele, coisa que todos eles fizeram. Os judeus — que a maldição de Alá se abata sobre eles — ocultaram estes factos entre eles...» Os versículos 88 e 89 realçam que os judeus são malditos por rejeitarem o islão. (É por isto que a maioria dos muçulmanos não aceita que os judeus tenham qualquer direito sobre o território de Israel, apesar do versículo 5:21, entre outros: um povo maldito não recebe presentes de Alá). O versículo 98 declara que o inimigo dos judeus é o próprio Alá.

Os versículos 94-96 lançam um desafio: se os judeus reclamam que o Paraíso lhes está exclusivamente reservado, por que razão não demandam a morte, em lugar de serem o povo «mais cioso da vida»? Este é o fundamento de um dos bordões jihadistas, tal como foi apregoado por um combatente da Al-Qaeda, há alguns anos: «Os Americanos amam a Pepsi-Cola, nós amamos a Morte». Os verdadeiros crentes anseiam pelo Paraíso e têm desdém por este mundo.

O versículo 106 interrompe as condenações dos judeus e introduz a doutrina islâmica da abrogação(2) (abrogation/naskh) segundo a qual Alá substitui aquilo que já revelou por uma revelação «melhor ou similar». O Tafsir al-Jalalayn declara que este versículo foi revelado porque os «descrentes começaram a ridicularizar a questão da abrogação, dizendo que Mafoma arregimenta os seus companheiros para uma coisa num dia e depois, no dia seguinte, proíbe-a». O Tanwîr al-Miqbâs min Tafsîr Ibn ‘Abbâs afirma que este versículo se refere «ao que foi abrogado do Alcorão e ao que não foi». Sayyid Qutb sustenta que esta «revisão das regras em reacção a alterações das circunstâncias durante a vida do Profeta Mafoma só pode ter ocorrido no melhor interesse da humanidade como um todo». O conceito de naskh, abrogação, é o fundamento para a noção islâmica amplamente aceite de que os versículos beligerantes da surata 9 têm preponderância sobre os versículos mais pacíficos revelados anteriormente, uma vez que surgiram posteriormente na vida de Mafoma — assunto ao qual havemos de voltar. (Para uma análise aprofundada da noção islâmica de abrogação, ver Ahmad Von Denffer’s ‘Ulum al-Qur’an.)

Os versículos 107-121 advertem os muçulmanos a cumprir as suas obrigações religiosas e a não se deixarem transviar pelos judeus e pelos cristãos, os quais tentarão iludir os muçulmanos (v. 109), mesmo que mantenham contendas entre si (v. 113). Os versículos 111 e 120 (bem como o v. 135) ridicularizam as tentativas dos judeus e dos cristãos de fazer proselitismo com os muçulmanos, e o versículo 116 marca a primeira ocorrência da recorrente rejeição da crença cristã na Filiação Divina de Cristo. A noção de que Alá poderia ter um filho é tida comprometedora do monoteísmo: «Dizem (os cristãos): Deus adoptou um filho! Glorificado seja! Pois a Deus pertence tudo quanto existe nos céus e naterra, e tudo está consagrado a Ele.» [Yusuf Ali: «They say: "Allah hath begotten a son": Glory be to Him. - Nay, to Him belongs all that is in the heavens and on earth: everything renders worship to Him».]

Os versículos 122-140 voltam a ter como tema os judeus, recordando-lhes a aliança que Alá fez na Caaba em Meca com Abraão e com Ismael (v. 125). Aos judeus é lembrado que até enquanto Abraão rogava a Alá que fizesse com que Meca fosse Cidade de Paz, Alá respondeu: «aos incrédulos dar-lhes-ei um desfrutar transitório e depois os condenarei ao tormento infernal. Que funesto destino!» (v. 126). Se o leitor se surpreende ao ver o patriarca judaico Abraão associado ao local sagrado do islão, a Caaba, tenha presente que apenas os iníquos afirmam «que Abraão, Ismael, Isaac, Jacob e as tribos eram judeus ou cristãos» (v. 140). Na verdade, eles eram submissos a Alá — muçulmanos (v. 128; cf. Yusuf Ali). Mesmo que não acreditassem em Mafoma enquanto profeta, eram, pelo menos, hunafá: monoteístas pré-islâmicos.

Tudo isto põe em evidência a recorrente asserção alcorânica segundo a qual as pessoas que hoje designamos por judeus e cristãos não passam de indivíduos que abjuraram a verdadeira religião, tal como foi transmitida por Abraão e Moisés, assim como por Jesus — e que a religião verdadeira é o islão. Como temos visto, grande parte da surata 2 é dirigida aos abjuradores judeus, que rejeitaram Mafoma, chamando-os de volta à verdadeira fé, a fé de Abraão, de Moisés, assim como de Mafoma. Deste modo, o islão afronta o judaísmo e o cristianismo ao alegar que a forma verdadeira e original de ambas as religiões é o islão. Presentemente, com frequência, figuras públicas do islão no Ocidente invocam a atribuição a Abraão, Moisés e a Jesus do estatuto de profetas islâmicos como prova da abertura de espírito e da disposição ecuménica do islão. Na realidade, porém, essa alegação mais não é que uma afirmação da supremacia do islão e da ilegitimidade dos judaísmo e do cristianismo.

Próxima entrada: surata 2, versículos 140-210, onde são dadas instruções sobre o Ramadão, à hajj (peregrinação) e à jihad.

(1) - «Nos textos portugueses mais antigos, este antropónimo aparece grafado de variadíssimas formas, como Mafoma, Mafamede, Mafomede, Mafomade, Mahamed, Mahoma, Mahomet, Mahometes ou Mahometo, sendo Mafamede e Mafoma por ventura as mais divulgadas (de resto, a última forma é correlata do nome do profeta nas outras línguas ibéricas, sendo que em castelhano, catalão, galego e até basco, se diz Mahoma). Desde o século XIX, porém, que tais termos caíram completamente em desuso no português, sendo até considerados ofensivos, posto que o seu uso, nas crónicas antigas, se fez sempre associado num contexto de cruzada contra a religião muçulmana

(2) - «Among the verses in the Quran containing orders or laws there are verses that abrogate verses previously revealed and acted upon. These abrogating verse are called _nasikh_ and those whose validity they terminate are called _mansukh_. The common notion of abrogation, that is, canceling of one law or code by another, is based on the idea that a new law is needed because of a mistake or shortcoming in the previous one. It is clearly inappropriate to ascribe a mistake in law-making to God, Who is perfect, and whose creation admit of no flaws. However, in the Quran, the abrogating verses mark the end of the validity of the abrogated verses because their heed and effect was of a temporary or limited nature. In time the new law appears and announces the end of the validity of the earlier law. Considering that Quran was revealed over a period of twenty-three years in ever-changing circumstances, it is not difficult to imagine the necessity of such laws. It is in this light that we should regard the wisdom of abrogation within the Quran: "And when we put a revelation in place of (another) revelation and Allah knows best what He reveals -- they say: you are just inventing it. Most of them do not know. Say: The Holy Spirit (Gibril) has revealed it from your hand with truth and as a guidance and good news for those who have surrendered (to God)" [16:101-102] It is a science on its own in Islam to know the Nasikh and Mansukh.»


Sugestão de leitura: The Complete Infidel's Guide to the Koran, de Robert Spencer.

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quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Blogando o Alcorão: surata 2, "A Vaca", versículos 40-75


Blogando o Alcorão: surata 2, "A Vaca", versículos 40-75(1)

O versículo 40 da surata 2 dirige-se aos "Filhos de Israel", dando início ao uma extensa meditação
a respeito de tudo o que Alá fez pelos judeus e da ingratidão com que estes lhe retribuíram. O versículo 41 adverte os judeus: não «negocieis as Minhas leis a vil preço»(2), o que foi interpretado pelos comentadores islâmicos como uma exortação a dar precedência ao serviço de Alá em relação às coisas mundanas. Sayyid Abul A’la Maududi, um reputado intelectual islâmico e expoente do islão político, afirma, no seu monumental Towards Understanding the Qur’an que este versículo «se refere às compensações mundanas em favor das quais [os judeus] rejeitavam as directrizes de Deus». No entanto, é objecto comum de especulação que este versículo seja, na verdade, uma censura de Mafoma(3) àqueles que lhe teriam vendido documentos alegadamente contendo revelações divinas, mas que, na realidade, não as continham - pessoas a quem dirigirá severas críticas novamente em 2:79.

Seja como for, os judeus podem regressar às boas graças de Deus convertendo-se ao islão (v. 43). Este versículo pode parecer anódino, uma vez que as traduções exortam os judeus a ser "perseverantes na oração" e a "dar esmola frequentemente" (como verte Abdullah Yusuf Ali), mas em árabe as palavras aqui usadas para "oração" - salat (الصَّلاَة) - e para dar "esmola" - zakat (الزَّكَاة) - referem-se especificamente à oração e à esmola islâmicas. Os não-muçulmanos não podem rezar salat, nem dar zakat. Quanto à necessidade da conversão Ibn Kathir é peremptório: «Alá ordenou aos Filhos de Israel que aceitassem o islão e seguissem Mafoma». Sayyid Qutb diz que neste passo Alá «convida os israelitas a juntar-se aos muçulmanos nas suas práticas religiosas e para deixar os seus preconceitos e tendências etnocêntricas».

Com o versículo 47, afirma Maududi, «faz-se referência aos mais conhecidos episódios da história judaica. Dado que estes episódios eram conhecidos por qualquer criança judia, a sua narração é breve, em prejuízo do detalhe. A referência visa recordar aos judeus tanto os favores com os quais os israelitas foram abençoados por Deus, como as faltas com que eles corresponderam às graças de Deus». Estas incluem a salvação dos israelitas das mãos do faraó, (vv. 49-50); o episódio do bezerro de ouro (vv. 54-55) e da dádiva de maná e codornizes no deserto (v. 57, 61), culminando com a proclamação de que os judeus «foram cobertos de humilhação e aflição; atraíram sobre si mesmos a ira de Alá. Isto porque foram rejeitando os sinais de Alá e matando os Seus mensageiros sem justa causa. Isto porque se rebelaram e persistiram na transgressão» (v. 61).

Ibn Kathir aplica estas palavras a todos os judeus: «Este ayah [versículo] indica que os Filhos de Israel foram atormentados com humilhação e que assim há-de ser, ou seja, que a humilhação não cessará. Continuaram a ser humilhados por todos os que lidam com eles, a par da vergonha que sentem de si mesmos».

Pode parecer estranho que imediatamente depois disto venha um dos "versículos tolerantes" do Alcorão, o versículo 62, o qual parece prometer um lugar no Paraíso aos «judeus, [a]os cristãos, e [a]os sabeus» («those who follow the Jewish (scriptures), and the Christians and the Sabians» - Ali.). Muhammad Asad exulta: «Com uma abertura de horizontes sem paralelo em nenhuma outra religião, a ideia de "salvação" é aqui sujeita a apenas três condições: acreditar em Deus, acreditar no Dia do Juízo e viver fazendo obras rectas». Aparentemente, não é necessário aceitar o islão. Porém, Asad contradiz-se ao acrescentar «neste escrito divino» («in this divine writ») a seguir às palavras «Os fiéis» («those who have attained to faith») na sua tradução do versículo 62; ou seja, para ser salvo é necessário acreditar no Alcorão, assim como nas revelações anteriores. Na verdade, os comentadores muçulmanos não estão inclinados a ver este versículo como um sinal de pluralismo divino. Os tradutores Ali e Pickthall, à semelhança de Asad, todos sentiram necessidade de acrescentar parêntesis que imprimem à passagem o sentido de que os judeus e os cristãos (assim como os sabianos, cuja identidade é duvidosa) serão salvos apenas se se tornarem muçulmanos.(4) Para além disso, de acordo com Ibn Abbas, este versículo foi revogado pelo versículo 3:85: «E quem quer que almeje (impingir) outra religião, que não seja o Islam, (aquela) jamais será aceita e, no outro mundo,essa pessoa contar-se-á entre os desventurado» («If anyone desires a religion other than Islam (submission to Allah), never will it be accepted of him; and in the Hereafter he will be in the ranks of those who have lost (all spiritual good)». - Ali). Qutb é da opinião que o versículo 2:62 se aplicava apenas até ao momento em que Mafoma trouxe o islão para o mundo, uma perspectiva apoiada por um dito de Mafoma registado por Tabari, no qual o profeta do islão diz que os cristãos que morreram antes da sua vinda serão salvos, mas os que ouviram falar dele e, contudo, rejeitaram a sua pretensão profética não o serão. [N.do T.: com o que Ibn Kathir concorda].

Segue-se a primeira de três famosas passagens sobre "macacos e porcos". Hoje em dia, os jihadistas referem-se frequentemente aos judeus com estes termos: macacos e porcos; esta prática fundamenta-se no Alcorão em 2:63-66; 5:59-60; e 7:166. A primeira destas passagens descreve Alá dirigindo-se aos judeus que profanaram o Sábado nos seguintes termos: «Sede símios desprezíveis!» A passagem prossegue dizendo que esta maldição há-de ser «exemplo para os seus contemporâneos e para os seus descendentes, e uma exortação para os tementes a Deus.» Na tradição teológica islâmica estas passagens não têm sido entendidas como aplicando-se a todos os judeus. Ibn Abbas diz que «os que não honraram a santidade do Sábado foram transformados em macacos, tendo morrido sem deixar descendência». Outros exegetas, contudo, a exemplo do pioneiro estudioso do islão, Ibn Qutaiba, sustentam que os macacos hoje existentes são descendentes dos judeus que não honraram o Sábado.

Esta interpretação é amplamente usada nos dias de hoje como metáfora para a corrupção dos judeus, ao nível de bestas. O próprio Mafoma deu início a esta prática quando se dirigiu aos judeus da tribo Quraizá (Qurayzah), ao preparar-se para os massacrar, com os termos: «Vós, irmãos de macacos.» Recentemente, o grão-xeque de Al-Azhar, Muhammad Sayyid Tantawi, chamou aos judeus «inimigos de Alá, descendentes de macacos e de porcos». O xeque saudita Abd Al-Rahman Al-Sudayyis, imã da principal mesquita de Meca, a mesquita Al-Haraam, explanou esta noção dizendo num sermão que os judeus são «a escumalha da raça humana, os ratos do mundo, os violadores de pactos e de acordos, os homicidas de profetas e a descendência de macacos e porcos». Um outro xeque saudita, Ba’d bin Abdallah Al-Ajameh Al-Ghamidi, explicitou mais claramente a conexão: «O comportamento actual dos irmãos de macacos e de porcos, a sua perfídia, propensão para violar os acordos e profanar os lugares santos... está relacionada com os feitos dos seus antepassados durante o primeiro período do islão - o que atesta a grande semelhança entre todos os judeus hoje vivos e os judeus que viveram no dealbar do islão». Para aprofundar esta matéria, veja-se o excelente estudo do Middle East Media Research Institute (MEMRI).

O versículo 67 retoma as repreensões: os israelitas reagem com arrogante rebeldia ao mandamento de Alá, transmitido por Moisés, de que sacrifiquem uma vaca (a vaca que dá o nome à surata). Somos informados que que os corações dos judeus se obstinam (v. 74) e os judeus acabam por ser amaldiçoados por Alá (v. 89). Para falar desta maldição e das consequências que dela advêm, e de outros assuntos até ao versículo 140 da surata 2 voltaremos no próximo capítulo.

Texto original: Blogging the Qur'an: Sura 2, "The Cow," verses 40-75.



(1) - De hoje em diante usaremos a expressão Alcorão, em lugar de Corão, decisão tomada após a leitura de um postal publicado por António Viriato no seu blogue Alma Lusíada, cuja leitura vivamente recomendo e do qual aqui deixo a parte mais relevante: «[O] livro sagrado dos Muçulmanos designa-se, em bom português, por Alcorão (do ár. Al-quran, a leitura, por excelência, a do livro sagrado), tal como sempre escreveram os nossos escritores, desde o século XIII e XIV, incluindo os clássicos, como Camões ( Os Lusíadas, III, 50:8 e VII, 13:4 ) e os românticos, como Herculano, e quase todos os Historiadores desde então até aos escritores contemporâneos de língua portuguesa mais escrupulosos no uso do vernáculo.»


(2) - Em virtude das discrepâncias entre a versão portuguesa e as traduções de referência usadas por Spencer, optei, nos capítulos anteriores, por manter as citações do Alcorão feitas pelo autor em inglês. A partir deste capítulo passarei a usar a tradução portuguesa de Samir El-Hayek disponível no site multilingue que temos usado. Sempre que as discrepâncias entre as versões usadas por Spencer e a versão portuguesa forem de monta e dadas a interpretações díspares, socorrer-nos-emos cumulativamente da versão usada pelo autor deste comentário.


(3)- «Nos textos portugueses mais antigos, este antropónimo aparece grafado de variadíssimas formas, como Mafoma, Mafamede, Mafomede, Mafomade, Mahamed, Mahoma, Mahomet, Mahometes ou Mahometo, sendo Mafamede e Mafoma por ventura as mais divulgadas (de resto, a última forma é correlata do nome do profeta nas outras línguas ibéricas, sendo que em castelhano, catalão, galego e até basco, se diz Mahoma). Desde o século XIX, porém, que tais termos caíram completamente em desuso no português, sendo até considerados ofensivos, posto que o seu uso, nas crónicas antigas, se fez sempre associado num contexto de cruzada contra a religião muçulmana


(4) - N.T. O uso da conjunção copulativa and/e em todas as traduções consultadas não parece dar consistência à objecção de Spencer. Já a exposição seguinte contra a suposta mensagem corânica de salvação para os judeus e cristãos desta passagem é concludente.



segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Blogando o Corão: surata 2, "A Vaca", versículos 1-39

Blogando o Corão: surata 2, "A Vaca", versículos 1-39

A surata 2, Al-Bácara (A Vaca), à semelhança da maioria dos capítulos do Corão, recebe o seu título de algo nele relatado - neste caso, o episódio no qual Moisés transmite aos israelitas o mandamento de Alá, ordenando o sacrifício de uma vaca (2:67-73). É a surata mais longa do Corão - 286 versículos - e dá início à disposição geral (mas não absoluta) de apresentar as suratas da mais longa para a mais breve, com excepção de Al-Fátiha, a qual merece a sua posição de destaque como primeira surata devido à sua centralidade no islão. A surata Al-Bácara, "A Vaca", foi revelada a Mafoma em Medina - isto é, no decurso da segunda parte da sua carreira profética, a qual teve início em Meca no ano 610. Em 622, Mafoma e a incipiente comunidade muçulmana deslocaram-se para Medina, onde, pela primeira vez, Mafoma se tornou líder político e militar. Os teólogos muçulmanos consideram, de um modo geral, as suratas de Medina como tendo precedência sobre as de Meca sempre que surja alguma discordância, de acordo com o versículo 106 deste capítulo do Corão, no qual Alá fala da abrogação de alguns versículos e da sua substituição por outros melhores. (Esta interpretação do versículo 106 não é, contudo, unânime, sustentando alguns intérpretes que o versículo não se refere à abrogação de parte alguma do Corão, mas sim às escrituras judaicas e cristãs. Voltaremos a esta questão oportunamente.)

A surata 2 compreende material de grande importância para os muçulmanos e é tida em grande consideração. O comentador medieval do Corão Ibn Kathir (cujos comentários continuam a ser lidos e respeitados pelos muçulmanos) dá conta, de modo coloquial, de que a recitação desta surata perturba Satanás, relatando que um dos primeiros seguidores de Mafoma, Ibn Massud, afirmou que Satanás "se retira da casa onde a sura Al-Bácara esteja a ser recitada e que, aos sair, solta gases". Com expressão menos vulgar que Ibn Massud, o próprio Mafoma diz: «Satanás foge da casa onde a surata Al-Bácara é recitada».

O capítulo começa com três letras árabes: alif, lam, mim. Numerosos capítulos do Corão começam deste modo, com estas três letras árabes, o que deu origem a uma considerável variedade de especulação mística quanto ao significado dessa sequência de letras. Contudo, a Tafsir al-Jalalayn, outro comentário clássico ao Corão, resume sucintamente a interpretação prevalecente: «Deus é que sabe o que quer dizer com essas letras.»

O versículo que sucede imediatamente estas letras contém uma chave para a doutrina islâmica: «This is the Scripture whereof there is no doubt.» O Corão não é para ser questionado ou julgado por padrões que se situem fora dele mesmo; bem pelo contrário, é o padrão pelo qual todas as outras coisas hão-de ser julgadas. Isto, está bem de ver, não é significativamente diferente do modo como muitas outras religiões consideram as suas Escrituras sagradas. Porém, não ocorreu no islão o desenvolvimento da crítica histórica e exegética que transformou a forma como os judeus e os cristãos compreendem as suas Escrituras presentemente. O Corão é um livro do qual não se pode duvidar e que não se pode questionar: quando um académico do islão, Suliman Bashear, ensinou aos seus alunos na Universidade Nacional An-Najah, em Nablus, que o Corão e o islão são produtos de um desenvolvimento histórico, não tendo sido revelados na sua forma acabada a Mafoma, os seus alunos defenestraram-no.

2:1-29 é uma extensiva explanação da perversidade daqueles que rejeitam a fé em Alá e faz ouvir vários temas que hão-de voltar a ecoar. O Corão, é-nos dito, é o guia para aqueles que acreditam no que foi revelado a Mafoma, assim como "no que foi revelado antes" do profeta (v. 4). Esta asserção envolve a pretensa assumpção muçulmana de que o Corão é a confirmação da Torá e dos Evangelhos, os quais transmitem a mesma mensagem que Mafoma recebe na revelação corânica (ver 5:44-48). Quando se constatou que a Torá e o Evangelho não concordavam com o Corão, surgiu a acusação de que os judeus e os cristãos tinham corrompido as suas Escrituras - o que constitui uma crença ortodoxa muçulmana presentemente. Muhammad Asad afirma-o claramente: «A religião do Corão só pode ser plenamente compreendida contra o pano de fundo das grandes religiões monoteístas que a precederam e que, de acordo com a fé muçulmana, encontram o seu clímax e a sua formulação definitiva na fé do islão.»

Um outro tema é o absoluto controlo de Alá sobre todas as coisas, inclusive a escolha individual entre acreditar ou não acreditar nele: «As to those who reject Faith, it is the same to them whether thou warn them or do not warn them; they will not believe. Allah hath set a seal on their hearts and on their hearing, and on their eyes is a veil; great is the penalty they (incur)» (vv. 6-7). Os Qadaris (1), do islão primitivo, postulavam que a humanidade dispunha de livre arbítrio e que, portanto, seria capaz de escolher entre fazer o bem e fazer o mal. Os seus opositores sustentavam que Alá determina tudo. Apesar de ambos os lados disporem de inúmeras citações corânicas para alicerçar as respectivas teses, as autoridades islâmicas acabaram por declarar o Qadarismo como herético, uma vez que limitava a absoluta soberania de Alá sobre todas as coisas. Aqueles que rejeitam a fé fazem-no porque Alá assim o deseja, de acordo com estes versos, não porque disponham de livre arbítrio. Diz Ibn Kathir: «Estes ayat (versículos) afirmam que aquele que, por determinação de Alá, é infeliz não há-de encontrar ninguém que o guie em direcção à felicidade e que aquele que Alá conduz ao erro, não há-de encontrar quem o guie.» (Uma boa panorâmica sobre a controvérsia dos Qadari pode seguir-se na obra do famigerado académico do islão Ignaz Goldziher’s Introduction to Islamic Theology and Law.)

Segue-se a condenação dos hipócritas e dos falsos crentes, os quais desgostaram Mafoma com frequência durante a sua vida profética (vv. 13-20). Surge, por fim, a asserção da sublimidade do Corão, de tal modo que os que duvidam são desafiados, caso duvidem da sua proveniência divina, a produzir uma surata como esta (v. 23). Muitos foram os que aceitaram o desafio, o qual é, evidentemente, do género de desafios que jamais serão bem sucedidos aos olhos de quem o lançou - «they could not produce the like thereof» (17:88).

2:25 apresenta os famosos jardins do Paraíso, onde os crentes hão de morar - assunto do qual falaremos mais adiante.

2:30-39 conta a história de Adão e Eva, de um modo sugestivo de que os ouvintes da recitação corânica já estariam familiarizados com o relato. Alá ordena aos anjos que se prostrem diante de Adão (v. 34), uma ordem que parece decorrer da afirmação bíblica de que o Homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, embora essa ideia não seja expressa nesta passagem do Corão. Segundo Ibn Kathir, «Alá afirmou a superior virtude de Adão em relação aos anjos ao ensinar-lhe, e não a eles, o nome de todas as coisas.» Satanás recusa prostrar-se, tornando-se, com essa decisão, incrédulo (v. 34) e tenta Adão e Eva com o fruto proibido. Alá promete fazer revelações para guiar a humanidade, avisando-a de que aqueles que ignorarem essas revelações serão punidos com o fogo do inferno.

Seguidamente, a surata dirige-se, nos versículos 40-75, aos Filhos de Israel, os quais desempenham um papel de grande relevo no Corão - e, não por acaso, na consciência islâmica moderna - de modo que dedicaremos o postal da próxima semana a blogá-los.

(1) - Para encontrar informações sobre esta corrente islâmica socorremo-nos da versão italiana desta série, Commento al Corano, tradução de Paolo Mantellini.

A partir do postal anterior, dedicado a Al-Fátiha, temos usado um Corão que possibilita a leitura em simultâneo das três traduções para língua inglesa usadas como referência por Robert Spencer, bastando para isso seleccionar as ditas traduções na caixa à esquerda encimada pela palavra English; ademais, esta versão permite visualizar versões noutras línguas, bastando seleccioná-las na caixa situada imediatamente abaixo da anteriormente indicada, encabeçada pelas palavras Other Languages, entre as quais o português, na mesma tradução do Corão online já indicado, a versão de Samir El-Hayek.



Texto original: Blogging the Qur'an: Sura 2, "The Cow," verses 1-39.


quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Blogando o Corão: Surata 1, "A Abertura"

Blogando o Corão: Sura 1, "A Abertura"

Al-Fátiha (A Abertura) é a primeira sura/surata (capítulo) do Corão e a oração mais usual do islão. Se o leitor for um piedoso muçulmano e reza as cinco orações diárias do preceito islâmico, recitará Al-Fátiha dezassete vezes no decurso dessas orações. De acordo com uma tradição islâmica, o profeta muçulmano, Mafoma, disse que Al-Fátiha superava tudo o que fora revelado por Alá na Torá, nos Evangelhos e no resto do Corão (Allah, "O Deus" em árabe, é a palavra usada por cristãos e judeus arabófonos para se referirem a Deus, assim como pelos muçulmanos). E, com efeito, Al-Fátiha condensa eficiente e eloquentemente muitos dos principais temas do Corão e do islão em geral: Alá é o "Senhor dos mundos", só ele deve ser adorado e só a ele se devem dirigir súplicas, é o juiz misericordioso de cada alma no dia do Juízo Final.

Na teologia islâmica, Alá é o autor de todas as palavras do Corão. A alguns pode parecer estranho que Alá diga algo como «louvado seja Alá, Senhor dos mundos», mas a interpretação islâmica tradicional é que Alá revelou esta oração a Mafoma logo no início da sua carreira profética (a qual começou no ano 610 AD, quando recebeu a primeira revelação de Alá por intermédio do arcanjo Gabriel - revelação registada no 96º capítulo do Corão) para que os muçulmanos soubessem como rezar.

É pelos seus dois últimos versos que Al-Fátiha suscita maior apreensão aos não-muçulmanos e pelos quais tem surgido ultimamente nas notícias. Um imã xiita, Husham Al-Husainy, suscitou polémica ao parafrasear esta passagem durante uma oração no encontro de Inverno do Comité Nacional do Partido Democrata, dando impressão de que estaria a rezar pela conversão ao islão dos representantes ali reunidos. O imã Yusuf Kavakci, da mesquita central de Dallas, rezou Al-Fatiha no Senado Estadual do Texas, dando azo a idênticas preocupações.

Os dois últimos versos de Al-Fátiha rogam a Alá: «6. Mostra-nos a via recta, 7. a via dos que favoreceste; não a dos que mereceram a Tua ira, nem a dos que se extraviaram.» [N.T.: tradução nossa do texto em inglês deste comentário, a tradução de Pickthal]. A interpretação islâmica tradicional desta passagem é que a "via recta" é o islão - cf. o livro do apologista do islão, John Esposito: "The Straight Path". Os que mereceram a ira de Alá são os judeus e os que se extraviaram são os cristãos.

O comentador clássico do Corão, Ibn Kathir explica que «as duas vias que Ele descreveu neste passo são ambas erráticas» e que aquelas «duas vias são as dos cristãos e dos judeus, facto que o crente deve estar bem ciente, de modo a poder evitá-los. A via dos crentes é o conhecimento da verdade e o ser-lhe conforme. Em comparação, os judeus abandonaram a prática da religião, enquanto os cristãos perderam a verdadeira sabedoria. Eis a razão por que a "ira" se abateu sobre os judeus, enquanto a descrição dos cristãos como "extraviados" é mais apropriada.»

A interpretação de Ibn Kathir desta passagem não é uma interpretação singular e "extremista". Na verdade, a maioria dos comentadores muçulmanos acredita que os judeus são os que mereceram a ira de Alá e que os cristãos são os que se extraviaram. Esta perspectiva é a de Tabari, de Zamakhshari, de Tafsir al-Jalalayn, de Tanwir al-Miqbas min Tafsir Ibn Abbas, a de Ibn Arabi, para além de Ibn Kathir. Uma outra perspectiva, contrastante mas não maioritária, é a de Nisaburi, o qual sustenta que «aqueles que mereceram a ira de Alá são as pessoas do descuido e os que se extraviaram são as pessoas da intemperança.»

Os wahhabistas foram criticados há alguns anos por ter acrescentado as expressões "tal como os judeus" e "tal como os cristãos", entre parêntesis, a esta passagem, num Corão editado na Arábia Saudita. Alguns comentadores ocidentais julgaram que os sauditas teriam concebido esta interpretação e, de igual modo, teriam dado origem à noção da hostilidade do Corão para com os judeus e cristãos. Os muçulmanos de todo o mundo aprendem como um dado adquirido que a oração fundamental da sua fé anatematiza os judeus e os cristãos.

Infelizmente, esta interpretação é venerável e ortodoxa na teologia islâmica. A introdução da referida explicitação entre parêntesis a uma tradução dificilmente afectaria a atitude dos muçulmanos, visto que o texto em árabe é, sempre e em toda a parte, normativo, em qualquer circunstância, e dado que tantos comentários veiculam a ideia de que judeus e cristãos são censurados na passagem corânica em questão. Dezassete vezes por dia, pelos piedosos.

Note-se que não estou a afirmar que a interpretação anti-semítica e anti-cristã de Al-Fátiha é a interpretação "correcta". Embora não pense que os textos religiosos sejam infinitamente maleáveis e admitam qualquer interpretação que o leitor lhes deseje atribuir, como alguns parecem crer, neste caso a leitura de Nisaburi tem tanto fundamento como a outra: não há nada no texto, em si mesmo, que conduza à conclusão inevitável de que se fala dos judeus e dos cristãos. E há que assinalar que, no seu colossal comentário ao Corão, significativamente chamado Fi Zilal al-Qur'an ("Na Sombra do Corão"), o teórico da jihad, activo no séc. XX, Sayyid Qutb, não faz qualquer menção aos judeus nem aos cristãos a propósito desta passagem. Por outro lado, a perspectiva islâmica segundo a qual os judeus mereceram a ira de Alá e os cristãos se extraviaram não decorre apenas desta passagem. Os judeus mereceram a ira de Alá ao rejeitarem Mafoma (2:87-90) e os cristãos extraviaram-se ao proclamar a divindade de Cristo (5:72).

A Hadith - as palavras e feitos de Mafoma e dos primeiros muçulmanos, pelos próprios narrados, também contêm material ligando os judeus à ira de Alá e os cristãos à maldição resultante de se desviarem da via recta. (Os judeus também são amaldiçoados, de acordo com o Corão 2:89 e uns e outros são amaldiçoados, de acordo com 9:30). Uma hadith conta que um dos primeiros muçulmanos, Zaid bin 'Amr bin Nufail, nas suas viagens, conheceu estudiosos do judaísmo e do cristianismo. O estudioso do judaísmo disse-lhe: «Não adoptarás a nossa religião se não receberes a tua parte da ira de Alá.»; e o cristão disse-lhe: «Não adoptarás a nossa religião se não obtiveres uma parte da maldição de Alá.» Zaid, escusado será dizer, tornou-se muçulmano.

À luz de passagens como estas e de outras semelhantes não surpreenderá que tantos comentadores muçulmanos tenham interpretado Al-Fátiha como contendo as referidas perspectivas.

Próximo capítulo: uma introdução ao capítulo mais longo do Corão, a surata 2, "A Vaca", e uma breve panorâmica dos versos 1-39.


Texto original: Blogging the Qur'an: Sura 1, "The Opening"




quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Blogando o Corão: Introdução

Blogando o Corão: Introdução

Para perceber os propósitos e os objectivos dos terroristas islâmicos da jihad, uma boa forma de começar talvez seja explorar o que eles próprios dizem acerca das razões por que fazem o que fazem e o que pretendem. Isto levar-nos-á ao Corão, o livro sagrado do islão. O jihadistas citam-no frequentemente e apresentam-se como aqueles que seguem o "verdadeiro islão", a genuína doutrina, tal como é ensinada no Corão e na tradição islâmica. Daí que, no decurso do meu trabalho de elucidação quanto aos objectivos dos jihadistas, tenho vindo a citar o Corão inúmeras vezes - e não há dia em que eu não seja acusado de "seleccionar falaciosamente" passagens violentas e de as citar "fora do seu contexto". Entretanto, o Council on American Islamic Relations e outras organizações islâmicas afirmam que, de modo a compreender a verdadeira e pacífica natureza do islão, devemos ler o Corão.

Por isso, ao longo dos próximos meses, lê-lo-ei e discuti-lo-ei numa série de postais. Integralmente. Nada de "selecções falaciosas" ou "descontextualizações". A coisa por inteiro, de uma ponta à outra. Alguns de vós podeis conhecer a série de David Plotz na Slate, "Blogging the Bible". A presente série será semelhante àquela, mas, em lugar de escrever simplesmente a minha opinião acerca de uma determinada passagem, farei referência, ao contrário de Plotz, a comentários - todos islâmicos - do Corão. Tentarei explicar de que modo os muçulmanos ortodoxos que estudam o Corão interpretam uma dada passagem e a importância que isso pode ter para os não-muçulmanos.

Precisaremos de um Corão. Aqui está um bom texto árabe/inglês. [Addendum: acrescento este Corão em árabe e inglês, (deste idioma estão disponíveis várias versões simultaneamente) com possibilidade de apresentar uma terceira língua, entre as quais o português (opções activáveis nas colunas à esquerda), e com audio da leitura dos versículos em árabe]. Na teologia islâmica tradicional, o Corão é, essencialmente e por inerência, um "Corão Árabe" (de acordo com a descrição que o próprio Corão faz de si mesmo repetidamente; ver: 12:2; 20:113; 39:28; 41:3; 41:44; 42:7; e 43:3). O seu significado pode ser transposto para outros idiomas, mas esses textos não são o Corão, o qual, não escrito em árabe, já não é o mesmo. Alguns académicos muçulmanos chegam a afirmar que o Corão não pode chegar a ser plenamente compreendido senão em árabe, mas a avalanche de traduções feitas por muçulmanos para muçulmanos que não sabem árabe (os quais hoje constituem a grande maioria), assim como para exercer o proselitismo entre não-muçulmanos enfraquecem o argumento. Aqui estão duas famigeradas traduções, as de Abdullah Yusuf Ali e de Mohammed Marmaduke Pickthall, acompanhadas por uma terceira de M. H. Shakir. Aqui está outra tradução famosa, a de Muhammad Asad. [E aqui uma antologia de dez traduções do Corão.] (N.T.: hiperligação quebrada)
[N.T.: eis duas versões do Corão em língua portuguesa. Em virtude das discrepâncias entre a versão portuguesa e as traduções de referência usadas por Spencer, optei por usar as citações do Corão feitas pelo autor, em inglês; as referências numéricas do capítulo e versículo permitirão ao leitor confrontar a versão inglesa com as traduções portuguesas.]

O Corão, de acordo com o pensamento islâmico clássico, é a cópia perfeita de um livro que existe no Céu desde sempre com Alá, o único Deus verdadeiro: "“it is a transcript of the eternal book [in Arabic, “mother of the book”] in Our keeping, sublime, and full of wisdom” (43:4)". O arcanjo Gabriel tê-lo-á revelado a Mafoma (1) (570-632), um mercador árabe. À semelhança de Jesus, Mafoma confiou a outros a tarefa de deixar registos escritos. Ao contrário de Jesus, Mafoma não é o autor da sua mensagem, servindo apenas de veículo de transmissão. O Corão é para os muçulmanos a pura Palavra de Alá, os quais apontam para o seu carácter poético como prova de que o Corão não é da autoria de Mafoma, o qual era analfabeto, mas do Todo Poderoso, o qual terá ditado todas as suas palavras. O muçulmano comum acredita que tudo o que se diz no livro é a absoluta verdade e que a mensagem do Corão é aplicável universal e eternamente.

Esta pretensão é muito mais ambiciosa que a dos cristãos em relação à Bíblia. Quando os cristãos, seja de que confissão for, dizem que a Bíblia é a Palavra de Deus, não pretendem dizer que Deus pronunciou as palavras que a constituem uma por uma e que a criação do texto dispensou qualquer intervenção humana - pelo contrário, os cristãos invocam o conceito de "inspiração", segundo o qual Deus exalou através de autores humanos, fazendo uso da sua sabedoria humana para comunicar o que quis. Porém, para os muçulmanos, o Corão é mais que inspirado. Não há, nem poderia haver no Corão uma passagem com a da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios 1:14-17: «14Dou graças a Deus por não ter baptizado nenhum de vós, a não ser Crispo e Gaio, 15para que ninguém diga que fostes baptizados em meu nome. 16Baptizei também a família de Estéfanes, mas, além destes, não sei se baptizei mais alguém. 17Na verdade, Cristo não me enviou a baptizar, mas a pregar o Evangelho, e sem recorrer à sabedoria da linguagem, para não esvaziar da sua eficácia a cruz de Cristo.» A memória imprecisa de Paulo demonstra a presença do elemento humano no Novo Testamento, o que, para os cristãos, não contraria, mas coexiste com o carácter inspirado do texto. Contudo, no Corão é apenas o próprio Alá quem fala (com algumas limitadas excepções). Não há elemento humano. O livro é a palavra divina pura e não adulterada.

É Alá, ele mesmo, quem o diz, no próprio Corão: “This is a mighty scripture. Falsehood cannot reach it from before or from behind” (41:41-2). É “free from any flaw” (39:28). Em suma, “it is the indubitable truth” (69:51). Alá - que, ao usar o plural majestático, não põe em causa, segundo os teólogos muçulmanos, a sua unidade absoluta -, proclama que “it was We that revealed the Koran, and shall Ourself preserve it” (15:9). Ler o Corão, porém, nem sempre é fácil. Dado que grande parte do livro consiste nas palavras que Alá dirige a Mafoma, é muitas vezes como estar a ouvir uma conversa entre duas pessoas que não conhecemos, falando sobre acontecimentos nos quais não estivemos envolvidos. Embora uma grande parte do que consta no Corão seja dito mais que uma vez, não é raro o leitor não conseguir perceber o que está a ser dito, nem porquê, sem nos socorrermos da tradição islâmica.

Para além disto, o Corão, no seu todo, não tem qualquer unidade narrativa, embora muitos capítulos tenham unidade interna. Excepção feita ao breve primeiro capítulo (sura/surata), os seus 114 capítulos são apresentados do mais longo para o mais curto. Nos capítulos mais longos contam-se histórias, dão-se leis e adverte-se os incrédulos, mas neles, e ao longo do livro, não há continuidade narrativa nem cronológica. Os capítulos mais breves, por seu turno, consistem em advertências poéticas e paralisantes sobre o inevitável julgamento divino. Quando li pela primeira vez o Corão e comecei a estudar o islão no final de 1980, início de 1981, estes capítulos poéticos atraíram a minha imaginação ao ponto de me levar a entrar, cada vez mais profundamente, noutros textos islâmicos.

Referir-me-ei às tradições islâmicas sempre que necessário, assim como a comentários tradicionais, de modo a esclarecer as diversas passagens. Ao chegarmos ao fim desta jornada, veremos mais claramente, estou em crer, o que anima os jihadistas - e talvez fiquemos a saber o que podemos e devemos fazer para lhes resistir.

Esta série será semanal - a ser publicada cada domingo no Jihad Watch - com actualizações aos postais, de acordo com as necessidades. Pretendo que esta seja uma exploração partilhada do Corão, uma conversa em dois sentidos. Razão pela qual agradeço os comentários e as críticas no espaço para isso reservado, por email, noutros blogues, e tentarei responder às questões e não deixar sem réplica os comentários, as críticas e os desafios mais pertinentes.

Na próxima semana: capítulo primeiro, al-Fatiha, a oração mais importante do islão.

Texto original: Blogging the Qur’an: Introduction

(1)- «Nos textos portugueses mais antigos, este antropónimo aparece grafado de variadíssimas formas, como Mafoma, Mafamede, Mafomede, Mafomade, Mahamed, Mahoma, Mahomet, Mahometes ou Mahometo, sendo Mafamede e Mafoma por ventura as mais divulgadas (de resto, a última forma é correlata do nome do profeta nas outras línguas ibéricas, sendo que em castelhano, catalão, galego e até basco, se diz Mahoma). Desde o século XIX, porém, que tais termos caíram completamente em desuso no português, sendo até considerados ofensivos, posto que o seu uso, nas crónicas antigas, se fez sempre associado num contexto de cruzada contra a religião muçulmana