Blogando o Alcorão: surata 2, "A Vaca", versículos 40-75(1)
O versículo 40 da surata 2 dirige-se aos "Filhos de Israel", dando início ao uma extensa meditação a respeito de tudo o que Alá fez pelos judeus e da ingratidão com que estes lhe retribuíram. O versículo 41 adverte os judeus: não «negocieis as Minhas leis a vil preço»(2), o que foi interpretado pelos comentadores islâmicos como uma exortação a dar precedência ao serviço de Alá em relação às coisas mundanas. Sayyid Abul A’la Maududi, um reputado intelectual islâmico e expoente do islão político, afirma, no seu monumental Towards Understanding the Qur’an que este versículo «se refere às compensações mundanas em favor das quais [os judeus] rejeitavam as directrizes de Deus». No entanto, é objecto comum de especulação que este versículo seja, na verdade, uma censura de Mafoma(3) àqueles que lhe teriam vendido documentos alegadamente contendo revelações divinas, mas que, na realidade, não as continham - pessoas a quem dirigirá severas críticas novamente em 2:79.
Seja como for, os judeus podem regressar às boas graças de Deus convertendo-se ao islão (v. 43). Este versículo pode parecer anódino, uma vez que as traduções exortam os judeus a ser "perseverantes na oração" e a "dar esmola frequentemente" (como verte Abdullah Yusuf Ali), mas em árabe as palavras aqui usadas para "oração" - salat (الصَّلاَة) - e para dar "esmola" - zakat (الزَّكَاة) - referem-se especificamente à oração e à esmola islâmicas. Os não-muçulmanos não podem rezar salat, nem dar zakat. Quanto à necessidade da conversão Ibn Kathir é peremptório: «Alá ordenou aos Filhos de Israel que aceitassem o islão e seguissem Mafoma». Sayyid Qutb diz que neste passo Alá «convida os israelitas a juntar-se aos muçulmanos nas suas práticas religiosas e para deixar os seus preconceitos e tendências etnocêntricas».
Com o versículo 47, afirma Maududi, «faz-se referência aos mais conhecidos episódios da história judaica. Dado que estes episódios eram conhecidos por qualquer criança judia, a sua narração é breve, em prejuízo do detalhe. A referência visa recordar aos judeus tanto os favores com os quais os israelitas foram abençoados por Deus, como as faltas com que eles corresponderam às graças de Deus». Estas incluem a salvação dos israelitas das mãos do faraó, (vv. 49-50); o episódio do bezerro de ouro (vv. 54-55) e da dádiva de maná e codornizes no deserto (v. 57, 61), culminando com a proclamação de que os judeus «foram cobertos de humilhação e aflição; atraíram sobre si mesmos a ira de Alá. Isto porque foram rejeitando os sinais de Alá e matando os Seus mensageiros sem justa causa. Isto porque se rebelaram e persistiram na transgressão» (v. 61).
Ibn Kathir aplica estas palavras a todos os judeus: «Este ayah [versículo] indica que os Filhos de Israel foram atormentados com humilhação e que assim há-de ser, ou seja, que a humilhação não cessará. Continuaram a ser humilhados por todos os que lidam com eles, a par da vergonha que sentem de si mesmos».
Pode parecer estranho que imediatamente depois disto venha um dos "versículos tolerantes" do Alcorão, o versículo 62, o qual parece prometer um lugar no Paraíso aos «judeus, [a]os cristãos, e [a]os sabeus» («those who follow the Jewish (scriptures), and the Christians and the Sabians» - Ali.). Muhammad Asad exulta: «Com uma abertura de horizontes sem paralelo em nenhuma outra religião, a ideia de "salvação" é aqui sujeita a apenas três condições: acreditar em Deus, acreditar no Dia do Juízo e viver fazendo obras rectas». Aparentemente, não é necessário aceitar o islão. Porém, Asad contradiz-se ao acrescentar «neste escrito divino» («in this divine writ») a seguir às palavras «Os fiéis» («those who have attained to faith») na sua tradução do versículo 62; ou seja, para ser salvo é necessário acreditar no Alcorão, assim como nas revelações anteriores. Na verdade, os comentadores muçulmanos não estão inclinados a ver este versículo como um sinal de pluralismo divino. Os tradutores Ali e Pickthall, à semelhança de Asad, todos sentiram necessidade de acrescentar parêntesis que imprimem à passagem o sentido de que os judeus e os cristãos (assim como os sabianos, cuja identidade é duvidosa) serão salvos apenas se se tornarem muçulmanos.(4) Para além disso, de acordo com Ibn Abbas, este versículo foi revogado pelo versículo 3:85: «E quem quer que almeje (impingir) outra religião, que não seja o Islam, (aquela) jamais será aceita e, no outro mundo,essa pessoa contar-se-á entre os desventurado» («If anyone desires a religion other than Islam (submission to Allah), never will it be accepted of him; and in the Hereafter he will be in the ranks of those who have lost (all spiritual good)». - Ali). Qutb é da opinião que o versículo 2:62 se aplicava apenas até ao momento em que Mafoma trouxe o islão para o mundo, uma perspectiva apoiada por um dito de Mafoma registado por Tabari, no qual o profeta do islão diz que os cristãos que morreram antes da sua vinda serão salvos, mas os que ouviram falar dele e, contudo, rejeitaram a sua pretensão profética não o serão. [N.do T.: com o que Ibn Kathir concorda].
Segue-se a primeira de três famosas passagens sobre "macacos e porcos". Hoje em dia, os jihadistas referem-se frequentemente aos judeus com estes termos: macacos e porcos; esta prática fundamenta-se no Alcorão em 2:63-66; 5:59-60; e 7:166. A primeira destas passagens descreve Alá dirigindo-se aos judeus que profanaram o Sábado nos seguintes termos: «Sede símios desprezíveis!» A passagem prossegue dizendo que esta maldição há-de ser «exemplo para os seus contemporâneos e para os seus descendentes, e uma exortação para os tementes a Deus.» Na tradição teológica islâmica estas passagens não têm sido entendidas como aplicando-se a todos os judeus. Ibn Abbas diz que «os que não honraram a santidade do Sábado foram transformados em macacos, tendo morrido sem deixar descendência». Outros exegetas, contudo, a exemplo do pioneiro estudioso do islão, Ibn Qutaiba, sustentam que os macacos hoje existentes são descendentes dos judeus que não honraram o Sábado.
Esta interpretação é amplamente usada nos dias de hoje como metáfora para a corrupção dos judeus, ao nível de bestas. O próprio Mafoma deu início a esta prática quando se dirigiu aos judeus da tribo Quraizá (Qurayzah), ao preparar-se para os massacrar, com os termos: «Vós, irmãos de macacos.» Recentemente, o grão-xeque de Al-Azhar, Muhammad Sayyid Tantawi, chamou aos judeus «inimigos de Alá, descendentes de macacos e de porcos». O xeque saudita Abd Al-Rahman Al-Sudayyis, imã da principal mesquita de Meca, a mesquita Al-Haraam, explanou esta noção dizendo num sermão que os judeus são «a escumalha da raça humana, os ratos do mundo, os violadores de pactos e de acordos, os homicidas de profetas e a descendência de macacos e porcos». Um outro xeque saudita, Ba’d bin Abdallah Al-Ajameh Al-Ghamidi, explicitou mais claramente a conexão: «O comportamento actual dos irmãos de macacos e de porcos, a sua perfídia, propensão para violar os acordos e profanar os lugares santos... está relacionada com os feitos dos seus antepassados durante o primeiro período do islão - o que atesta a grande semelhança entre todos os judeus hoje vivos e os judeus que viveram no dealbar do islão». Para aprofundar esta matéria, veja-se o excelente estudo do Middle East Media Research Institute (MEMRI).
O versículo 67 retoma as repreensões: os israelitas reagem com arrogante rebeldia ao mandamento de Alá, transmitido por Moisés, de que sacrifiquem uma vaca (a vaca que dá o nome à surata). Somos informados que que os corações dos judeus se obstinam (v. 74) e os judeus acabam por ser amaldiçoados por Alá (v. 89). Para falar desta maldição e das consequências que dela advêm, e de outros assuntos até ao versículo 140 da surata 2 voltaremos no próximo capítulo.
Texto original: Blogging the Qur'an: Sura 2, "The Cow," verses 40-75.
(1) - De hoje em diante usaremos a expressão Alcorão, em lugar de Corão, decisão tomada após a leitura de um postal publicado por António Viriato no seu blogue Alma Lusíada, cuja leitura vivamente recomendo e do qual aqui deixo a parte mais relevante: «[O] livro sagrado dos Muçulmanos designa-se, em bom português, por Alcorão (do ár. Al-quran, a leitura, por excelência, a do livro sagrado), tal como sempre escreveram os nossos escritores, desde o século XIII e XIV, incluindo os clássicos, como Camões ( Os Lusíadas, III, 50:8 e VII, 13:4 ) e os românticos, como Herculano, e quase todos os Historiadores desde então até aos escritores contemporâneos de língua portuguesa mais escrupulosos no uso do vernáculo.»
(2) - Em virtude das discrepâncias entre a versão portuguesa e as traduções de referência usadas por Spencer, optei, nos capítulos anteriores, por manter as citações do Alcorão feitas pelo autor em inglês. A partir deste capítulo passarei a usar a tradução portuguesa de Samir El-Hayek disponível no site multilingue que temos usado. Sempre que as discrepâncias entre as versões usadas por Spencer e a versão portuguesa forem de monta e dadas a interpretações díspares, socorrer-nos-emos cumulativamente da versão usada pelo autor deste comentário.
(3)- «Nos textos portugueses mais antigos, este antropónimo aparece grafado de variadíssimas formas, como Mafoma, Mafamede, Mafomede, Mafomade, Mahamed, Mahoma, Mahomet, Mahometes ou Mahometo, sendo Mafamede e Mafoma por ventura as mais divulgadas (de resto, a última forma é correlata do nome do profeta nas outras línguas ibéricas, sendo que em castelhano, catalão, galego e até basco, se diz Mahoma). Desde o século XIX, porém, que tais termos caíram completamente em desuso no português, sendo até considerados ofensivos, posto que o seu uso, nas crónicas antigas, se fez sempre associado num contexto de cruzada contra a religião muçulmana.»
(4) - N.T. O uso da conjunção copulativa and/e em todas as traduções consultadas não parece dar consistência à objecção de Spencer. Já a exposição seguinte contra a suposta mensagem corânica de salvação para os judeus e cristãos desta passagem é concludente.