quinta-feira, 4 de março de 2010

Blogando o Alcorão: surata 2, "A Vaca", versículos 141-210

Blogando o Alcorão: surata 2, "A Vaca", versículos 141-210

Prosseguindo o nosso itinerário através de «A Vaca», a segunda e a mais extensa surata do Alcorão, deparamos, nos versículos 141-150, com a questão da qibla, a orientação geográfica da oração. Os muçulmanos são instruídos, daqui em diante, a voltar-se para a Mesquita Sagrada de Meca quando rezam (v. 150), quando, anteriormente, se associavam aos judeus voltando-se para Jerusalém. Esta mudança parece ter ocorrido uma vez terminadas as tentativas de Mafoma(1) para convencer os judeus de que era um profeta na linhagem dos profetas judaicos. Só «os néscios» (v. 142) se opuseram a esta mudança — ou seja, os judeus: quanto a esta dedução, o comentador relativamente moderado Muhammad Asad, assim como o comparativamente mais duro mufti Muhammad Aashiq Ilahi Bulandshahri estão de acordo. Asad afirma: «Este "virar de costas" a Jerusalém desagradou, evidentemente aos judeus de Medina, os quais se devem ter sentido confortados ao ver os muçulmanos voltar-se em oração para a sua cidade santa; e é a eles que a primeira frase desta passagem se refere». Alá prossegue criticando os judeus e os cristãos por cederem aos seus «seus [vãos] desejos» (cf. Yusuf Ali: «their (vain) desires») mesmo sabedores de que a qibla de Mafoma vem de Alá (vv. 144-146).

Vimos anteriormente que, no versículo 106, Alá declarou que quando abrogasse um versículo o substituiria por um melhor, e vimos também que alguns muçulmanos crêem que se esta disposição se refere a versículos do Alcorão, enquanto outros muçulmanos julgam tratar-se de uma referência à superação da Bíblia pelo Alcorão. A mudança na qibla tem alguma relação com esta questão. Ibn Abbas — primo de Mafoma e figura importante, de reconhecida autoridade, no islão incipiente —, afirma que «a primeira passagem a ser abrogada no Alcorão foi sobre a qibla». No entanto, nenhuma passagem do Alcorão determina que a oração se deve fazer voltado para Jerusalém, pelo que devemos estar em presença da abrogação de uma regra extra-alcorânica. Havemos de voltar à questão da abrogação em contextos diversos.

Alá apresenta a nova qibla como sendo um presente especialmente para Mafoma, uma nova direcção que o «satisfaça» (v. 144). Esta é uma das várias passagens do Alcorão que apontam para uma especial solicitude de Alá para com Mafoma; um outro exemplo dessa solicitude é a delicada repreensão que Alá dirige a Mafoma por este se ter inicialmente recusado a casar com a sua ex-nora, contra a vontade de Alá (v. 33:37). Tais passagens levaram a que os não-crentes pensassem que Mafoma estaria a usufruir das vantagens pessoais decorrentes da sua condição de profeta, mas, para os muçulmanos, estas passagens sublinham o especial estatuto de Mafoma: os pormenores da sua vida, até as suas aspirações — o seu desejo de rezar voltado para a Caabá — são veículos através dos quais Alá revela verdades eternas e leis divinas. E o seu exemplo é normativo. Muqtedar Khan do Centro para o Estudo do Islão e da Democracia (Center for the Study of Islam and Democracy) explica: «Nenhum líder religioso exerce tamanha influência sobre os seus seguidores como Mafoma (que a paz esteja com ele), o último profeta do islão... Tanto assim, que as palavras, os feitos e os silêncios (aquilo que ele viu e não interditou) de Mafoma tornou-se fonte autónoma de lei islâmica. Os muçulmanos, não só obedecem, mas tentam emular e imitar o seu Profeta em todos os aspectos do seu dia-a-dia, como parte da sua observância religiosa. Deste modo, Mafoma é o veículo e também a fonte da lei divina».

Os versículos 151-157 incentivam os crentes a ser perseverantes; o versículo 158 sanciona uma prática pré-islâmica, durante o Hajj, a peregrinação a Meca; e os versículos 159-177 recuperam como tema a perversidade dos incrédulos. Aqueles que rejeitam o islão chamam sobre si as maldições de Alá, «dos anjos e de toda a humanidade» (v. 161), e o inferno será a sua morada eterna (v. 162; cf. Pickthall: «They ever dwell therein.»). Em contrapartida, o fardo dos fiéis não é pesado. Apenas têm que se abster de comer determinados alimentos, entre os quais o porco (v. 173). Alguns, entre os infiéis, teimam em ocultar as revelações feitas por Alá (v. 174). Aqueles que disputam acerca do que Alá revelou estão em «cisma profundo» (v. 176). O tafsir al-Jalalayn declara que quem o faz são, novamente, os judeus.

Os versículos 177-203 legislam sobre diversas matérias: zakat (esmola), o jejum do Ramadão, a Hajj e a jihad. O versículo 178 define a lei da retaliação (qisas) por homicídio: a vida da vítima deve ser resgatada por igual valor, pena que pode ser remida sob a forma de dinheiro-de-sangue (diyah): um pagamento para compensar a perda sofrida. Na lei islâmica (sharia) este montante compensatório varia de acordo com a identidade da vítima. «Umdat al-Salik» (A confiança do viajante), um manual para a aplicação da sharia — o qual, de acordo com a prestigiada Universidade Al-Azhar, situada no Cairo, está conforme «prática e a fé da comunidade sunita ortodoxa» —, determina que o montante a ser pago pela morte de uma mulher é metade do que há-de ser pago pela de um homem e pela morte de um judeu ou de um cristão, um terço do valor a pagar pela vida de um muçulmano de sexo masculino (o4.9). Para uma explicação sobre esta matéria, leiam-se as palavras do xeque sufi Sultanhussein Tabandeh.

Os versículos 190-193 estão entre os mais importantes do Alcorão no que concerne à jihad (guerra santa). O versículo 190, «não pratiqueis agressão», é invocado, hoje em dia, com frequência, para demonstrar que a jihad pode ser apenas defensiva. Asad afirma que «este versículo e o seguinte estabelecem, de modo inequívoco, que apenas a auto-defesa (no sentido mais lato da expressão) confere aos muçulmanos autorização para fazer a guerra.» Contudo, o tafsir al-Jalalayn afirma que este versículo foi abrogado pelo versículo 9:1, o qual anula qualquer tratado celebrado entre os muçulmanos e os não-crentes. Ibn Kathir, por seu turno, não considera o versículo revogado.

O que vem a ser uma guerra defensiva? Um indício para esclarecer esta dúvida encontra-se no versículo 193: «E combatei-os até terminar a perseguição e prevalecer a religião de Deus. (...)» Ibn Ishaq explica que o significado deste versículo é que os muçulmanos devem lutar contra os infiéis «até que apenas Deus seja adorado». Diz Bulandshahri: «Os pecados mais graves são a infidelidade (kufr) e o politeísmo (shirk), os quais consistem em rebeliões contra Alá, O Criador. Para erradicar estes pecados, aos muçulmanos é exigido fazer guerra até que não exista nem infidelidade, nem politeísmo no mundo e que a única religião seja a de Alá». Este conflito seria essencialmente defensivo, contra as agressões da infidelidade: se para os muçulmanos a guerra é um imperativo até que a infidelidade seja extinta, a sua mera presença constitui agressão suficiente para permitir o início de hostilidades. Este é um dos fundamentos para o conceito supremacionista segundo o qual os muçulmanos devem travar guerra contra os infiéis até que eles se convertam ao islão, ou sejam subjugados sob o domínio da lei islâmica, tal como o versículo 9: 29 determina explicitamente. Como formula Mafoma, o Profeta do Islão: «Foi-me ordenado que lute contra todo e qualquer um até que testemunhem que não há Deus senão Alá, e creiam que eu sou o mensageiro (do Senhor) e acreditem em tudo o que eu lhes trouxe. E quando o fizerem, ao seu sangue e às suas riquezas será garantida protecção em meu nome, excepto que tal (o derramamento de sangue ou o despojar da propriedade) se justifique por lei, e as suas contas serão prestadas a Alá». (Hadith Sahih Muslim, Livro 1, Capítulo 9, Número 29-35). Deste modo, pode-se depreender que se alguém não aceita Mafoma como profeta, o seu sangue e as suas riquezas não estão a salvo daqueles que lêem estas palavras como sendo as palavras de um mensageiro do Deus único e verdadeiro.

Os versículos 204-210 advertem os crentes para que não duvidem, não apostatem, nem adiram ao islão com reservas. De seguida, dá-se início ao escrutínio de uma série de questões colocadas a Mafoma pelos seus seguidores — em cujas respostas revelou, entre outras coisas, o prodigioso significado da frase «a perseguição é pior que o morticínio» (a qual já surgira no versículo 2:191). É justamente aqui que reataremos este comentário na próxima entrada.

(1) - «Nos textos portugueses mais antigos, este antropónimo aparece grafado de variadíssimas formas, como Mafoma, Mafamede, Mafomede, Mafomade, Mahamed, Mahoma, Mahomet, Mahometes ou Mahometo, sendo Mafamede e Mafoma por ventura as mais divulgadas (de resto, a última forma é correlata do nome do profeta nas outras línguas ibéricas, sendo que em castelhano, catalão, galego e até basco, se diz Mahoma). Desde o século XIX, porém, que tais termos caíram completamente em desuso no português, sendo até considerados ofensivos, posto que o seu uso, nas crónicas antigas, se fez sempre associado num contexto de cruzada contra a religião muçulmana


Sugestão de leitura: The Politically Incorrect Guide to Islam (and The Crusades) de Robert Spencer.

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