terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Blogando o Alcorão: surata 2, "A Vaca", versículos 75-140

Blogando o Alcorão: surata 2, "A Vaca", versículos 75-140

No segmento seguinte da surata 2, versículos 75-105, prossegue a crítica do Alcorão aos judeus. Quando lemos declarações de líderes do Hamas ou de Mahmoud Ahmadinejad acerca de Israel, devemos ter presente que a sua visão de Israel se faz através de um prisma alcorânico. Estas pessoas, se fizeram estudos alcorânicos, aprenderam que os judeus são os mais perversos e culpáveis — e também os mais diligentes e persistentes — inimigos de Ala, de Mafoma(1) e dos muçulmanos.

No versículo 75, Ala pergunta aos muçulmanos como conseguem ter alguma expectativa de «que os judeus creiam em vós, sendo que alguns deles escutavam as palavras de Deus e, depois de as terem compreendido, alteravam-nas conscientemente?» No seu Tafsir Anwar al-Bayan, o mufti indiano do séc. XX Muhammad Aashiq Ilahi Bulandshahri nota que alguns comentadores «mencionam que este versículo se refere à adulteração da Torá. Os mestres judeus costumavam aceitar subornos a fim de alterar certas injunções, de modo a que a Escritura se adaptasse aos seus desejos». Elaborando esta asserção, em relação ao versículo 79, Bulandshahri afirma que «os judeus cometem um duplo pecado ao alterar a escritura de Alá e ao aceitar um suborno».
Esta é uma posição tradicional : o Tafsir al-Jalalayn declara que os judeus «alteraram a descrição do Profeta na Torá, assim como o versículo da "lapidação" e outros pormenores, e os reescreveram de forma distinta da qual foram revelados».

Na sua arrogância, os judeus julgam que permanecerão no inferno apenas durante alguns dias (versículo 80). Bukhari conta que, depois de terem sido derrotados por Mafoma, os judeus de Khaibar — um oásis da Arábia —, lhe preparam um carneiro assado e o envenenaram. Pressentindo o estratagema, Mafoma convocou os judeus e interrogou-os. No decurso deste interrogatório, eles disseram-lhe: «Permaneceremos no fogo infernal por um curto período e, depois disso, vós (muçulmanos) tomareis o nosso lugar». Mafoma respondeu com indignação: «Sereis malditos e humilhados no inferno! Por Alá, nunca tomaremos o vosso lugar nele» e revelou que sabia do seu estratagema para o envenenar.

Os versículos 81-105 recordam, mais uma vez, aos judeus, as graças que receberam de Alá, as quais a maioria deles «renegou desdenhosamente» (v. 83), e criticam-nos com severidade pela sua obstinação e desobediência. O versículo 85 resume vários desses actos de desobediência, culminando na asserção de que os judeus acreditam «apenas em parte» das suas próprias escrituras sagradas e «rejeitam o restante». Ibn Kathir afirma que os judeus rejeitaram parte da Torá e ainda que: «não se deve acreditar neles no que respeita à descrição do Mensageiro de Alá, à sua vinda, à expulsão dele da sua terra, à sua Hegira, e acerca do resto da informação que os anteriores profetas lhes transmitiram sobre ele, coisa que todos eles fizeram. Os judeus — que a maldição de Alá se abata sobre eles — ocultaram estes factos entre eles...» Os versículos 88 e 89 realçam que os judeus são malditos por rejeitarem o islão. (É por isto que a maioria dos muçulmanos não aceita que os judeus tenham qualquer direito sobre o território de Israel, apesar do versículo 5:21, entre outros: um povo maldito não recebe presentes de Alá). O versículo 98 declara que o inimigo dos judeus é o próprio Alá.

Os versículos 94-96 lançam um desafio: se os judeus reclamam que o Paraíso lhes está exclusivamente reservado, por que razão não demandam a morte, em lugar de serem o povo «mais cioso da vida»? Este é o fundamento de um dos bordões jihadistas, tal como foi apregoado por um combatente da Al-Qaeda, há alguns anos: «Os Americanos amam a Pepsi-Cola, nós amamos a Morte». Os verdadeiros crentes anseiam pelo Paraíso e têm desdém por este mundo.

O versículo 106 interrompe as condenações dos judeus e introduz a doutrina islâmica da abrogação(2) (abrogation/naskh) segundo a qual Alá substitui aquilo que já revelou por uma revelação «melhor ou similar». O Tafsir al-Jalalayn declara que este versículo foi revelado porque os «descrentes começaram a ridicularizar a questão da abrogação, dizendo que Mafoma arregimenta os seus companheiros para uma coisa num dia e depois, no dia seguinte, proíbe-a». O Tanwîr al-Miqbâs min Tafsîr Ibn ‘Abbâs afirma que este versículo se refere «ao que foi abrogado do Alcorão e ao que não foi». Sayyid Qutb sustenta que esta «revisão das regras em reacção a alterações das circunstâncias durante a vida do Profeta Mafoma só pode ter ocorrido no melhor interesse da humanidade como um todo». O conceito de naskh, abrogação, é o fundamento para a noção islâmica amplamente aceite de que os versículos beligerantes da surata 9 têm preponderância sobre os versículos mais pacíficos revelados anteriormente, uma vez que surgiram posteriormente na vida de Mafoma — assunto ao qual havemos de voltar. (Para uma análise aprofundada da noção islâmica de abrogação, ver Ahmad Von Denffer’s ‘Ulum al-Qur’an.)

Os versículos 107-121 advertem os muçulmanos a cumprir as suas obrigações religiosas e a não se deixarem transviar pelos judeus e pelos cristãos, os quais tentarão iludir os muçulmanos (v. 109), mesmo que mantenham contendas entre si (v. 113). Os versículos 111 e 120 (bem como o v. 135) ridicularizam as tentativas dos judeus e dos cristãos de fazer proselitismo com os muçulmanos, e o versículo 116 marca a primeira ocorrência da recorrente rejeição da crença cristã na Filiação Divina de Cristo. A noção de que Alá poderia ter um filho é tida comprometedora do monoteísmo: «Dizem (os cristãos): Deus adoptou um filho! Glorificado seja! Pois a Deus pertence tudo quanto existe nos céus e naterra, e tudo está consagrado a Ele.» [Yusuf Ali: «They say: "Allah hath begotten a son": Glory be to Him. - Nay, to Him belongs all that is in the heavens and on earth: everything renders worship to Him».]

Os versículos 122-140 voltam a ter como tema os judeus, recordando-lhes a aliança que Alá fez na Caaba em Meca com Abraão e com Ismael (v. 125). Aos judeus é lembrado que até enquanto Abraão rogava a Alá que fizesse com que Meca fosse Cidade de Paz, Alá respondeu: «aos incrédulos dar-lhes-ei um desfrutar transitório e depois os condenarei ao tormento infernal. Que funesto destino!» (v. 126). Se o leitor se surpreende ao ver o patriarca judaico Abraão associado ao local sagrado do islão, a Caaba, tenha presente que apenas os iníquos afirmam «que Abraão, Ismael, Isaac, Jacob e as tribos eram judeus ou cristãos» (v. 140). Na verdade, eles eram submissos a Alá — muçulmanos (v. 128; cf. Yusuf Ali). Mesmo que não acreditassem em Mafoma enquanto profeta, eram, pelo menos, hunafá: monoteístas pré-islâmicos.

Tudo isto põe em evidência a recorrente asserção alcorânica segundo a qual as pessoas que hoje designamos por judeus e cristãos não passam de indivíduos que abjuraram a verdadeira religião, tal como foi transmitida por Abraão e Moisés, assim como por Jesus — e que a religião verdadeira é o islão. Como temos visto, grande parte da surata 2 é dirigida aos abjuradores judeus, que rejeitaram Mafoma, chamando-os de volta à verdadeira fé, a fé de Abraão, de Moisés, assim como de Mafoma. Deste modo, o islão afronta o judaísmo e o cristianismo ao alegar que a forma verdadeira e original de ambas as religiões é o islão. Presentemente, com frequência, figuras públicas do islão no Ocidente invocam a atribuição a Abraão, Moisés e a Jesus do estatuto de profetas islâmicos como prova da abertura de espírito e da disposição ecuménica do islão. Na realidade, porém, essa alegação mais não é que uma afirmação da supremacia do islão e da ilegitimidade dos judaísmo e do cristianismo.

Próxima entrada: surata 2, versículos 140-210, onde são dadas instruções sobre o Ramadão, à hajj (peregrinação) e à jihad.

(1) - «Nos textos portugueses mais antigos, este antropónimo aparece grafado de variadíssimas formas, como Mafoma, Mafamede, Mafomede, Mafomade, Mahamed, Mahoma, Mahomet, Mahometes ou Mahometo, sendo Mafamede e Mafoma por ventura as mais divulgadas (de resto, a última forma é correlata do nome do profeta nas outras línguas ibéricas, sendo que em castelhano, catalão, galego e até basco, se diz Mahoma). Desde o século XIX, porém, que tais termos caíram completamente em desuso no português, sendo até considerados ofensivos, posto que o seu uso, nas crónicas antigas, se fez sempre associado num contexto de cruzada contra a religião muçulmana

(2) - «Among the verses in the Quran containing orders or laws there are verses that abrogate verses previously revealed and acted upon. These abrogating verse are called _nasikh_ and those whose validity they terminate are called _mansukh_. The common notion of abrogation, that is, canceling of one law or code by another, is based on the idea that a new law is needed because of a mistake or shortcoming in the previous one. It is clearly inappropriate to ascribe a mistake in law-making to God, Who is perfect, and whose creation admit of no flaws. However, in the Quran, the abrogating verses mark the end of the validity of the abrogated verses because their heed and effect was of a temporary or limited nature. In time the new law appears and announces the end of the validity of the earlier law. Considering that Quran was revealed over a period of twenty-three years in ever-changing circumstances, it is not difficult to imagine the necessity of such laws. It is in this light that we should regard the wisdom of abrogation within the Quran: "And when we put a revelation in place of (another) revelation and Allah knows best what He reveals -- they say: you are just inventing it. Most of them do not know. Say: The Holy Spirit (Gibril) has revealed it from your hand with truth and as a guidance and good news for those who have surrendered (to God)" [16:101-102] It is a science on its own in Islam to know the Nasikh and Mansukh.»


Sugestão de leitura: The Complete Infidel's Guide to the Koran, de Robert Spencer.

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